O LADO SOMBRIO Por R. Moreno®
“Eu serei seu espelho
Refletirei o que você é, caso não saiba”
- I’ll be your mirror, The Velvet Underground.
- Muito bem, crianças... Quem fez o dever de casa? – perguntou Adriana.
Vários braços pequenos levantaram-se, exceto um, no fim da sala.
- Tiago, você não fez o dever? – perguntou a professora.
- Fiz, mas meu cachorro comeu... – respondeu um garoto em tom de desleixo, quase deitado em sua carteira e com os pés na carteira da frente.
- Essa desculpa eu não engulo... – disse a professora.
- Se não acredita eu posso trazer a merda dele até aqui pra senhora ver... – rebateu o aluno com sarcasmo.
“Hahahahaha”, a sala se pôs a gargalhar.
- Como ousa falar essas coisas na sala de aula? – gritou Adriana, enrubescida. A sala inteira ainda gargalhava e Tiago dava sorrisinhos sarcásticos com o canto da boca fingindo ignorar a professora. – Saia já dessa sala!
Tiago continuava na mesma posição. As gargalhadas foram cessando aos poucos.
- Mandei sair! – continuou a professora. Tiago ignorou novamente – É assim, Tiago? Pois tudo bem, eu vou chamar o monitor para levar suas coisas e lhe acompanhar até a secretaria – Adriana levantou-se da cadeira com tanta raiva que nem percebeu que estava muito próxima da mesa. Acabara de completar seis meses de gravidez e pela primeira vez esqueceu de afastar a cadeira para se levantar e bateu a barriga na mesa. Deu um grito alto e foi amparada por alguns alunos das carteiras da frente. Uma das alunas correu para chamar um dos monitores que veio às pressas.
- Está tudo bem, Joel... – disse Adriana respirando profundamente, apoiada no ombro do monitor – Só olha essas crianças pra mim enquanto eu vou ao banheiro... por favor – pediu ela.
- Claro, professora – disse o monitor – Ei, professora, a senhora deixou cair sua bolsa.
Adriana parou no meio do corredor. O rosto permanecia posicionado para frente, como se algo a impedisse de olhar para trás.
- Poderia pegar para mim?
- Claro que sim! – disse Joel ajuntando a bolsa.
Ele pegou a bolsa e entregou para a professora que estava de costas para ele estendendo a mão direita para trás.
- Obrigada, Joel – disse Adriana ainda olhando para frente.
Em um dos gabinetes sanitários, Adriana se aliviava da bexiga. Mas a cabeça doía bastante, até mais que a dor do golpe na barriga. Após sair do gabinete lavou o rosto na pia e permaneceu alguns segundos imersa em pensamentos com os olhos direcionados para a pia. Sua cabeça parecia pesar nos ombros. O barulho da torneira pingando ecoava livre pelo silêncio do banheiro.
- Esses diabinhos têm que aprender a me respeitar...! – sussurrou ela consigo mesma.
- É só deixar comigo... – de súbito, outro sussurro, vindo de trás de sua costa, fez todos os pêlos de seu corpo eriçarem-se.
- Vá embora... Eu não preciso de você – sussurrou Adriana de cabeça baixa. Um silêncio pairou por alguns segundos. Ela já se foi, pensou levantando o rosto devagar.
Ficou um instante imóvel, seus pés criaram raízes no piso. As canelas tremiam. Seu coração acelerou e seus olhos fitavam a imagem além do espelho à sua frente. Ana encontrava-se em pé atrás dela estendendo uma faca que lhe trazia lembranças ruins. Dois reflexos parecidos se observavam. Só não eram completamente idênticos pelas roupas e pela aparente diferença de idade. Adriana era uma mulher, vestida com roupas discretas que uma professora do ensino fundamental deveria usar, enquanto que Ana era uma adolescente vestindo apenas uma camisola azul de hospital. Mas fora esses detalhes ambas tinham a pele morena bem clara e um rosto com traços suavemente desenhados que timidamente se escondiam nos negros cabelos encaracolados pela falta de um penteado mais vaidoso. Todavia, Ana tinha certas peculiaridades na aparência que diferenciavam bem as duas. Os traços hostis de seu rosto e os seus olhos encolerizados expressavam um ódio doentio. Sua boca era nada mais que uma linha cinza como a de um defunto. Quando estendeu a mão direita oferecendo a faca exibiu uma cicatriz em forma de corte no pulso.
- Vá embora! – gritou Adriana. Ana desapareceu sem que os olhos da professora pudessem acompanhar. Mas Adriana sabia que, mesmo invisível, Ana sempre estará lá atrás lhe oferecendo aquela faca.
- Está tudo bem professora? – perguntou assustada uma das serventes mais velhas que acabara de entrar no banheiro.
- Sim, Maria... é essa gravidez que tá me deixando louca...!
- É normal, senhora... Todos os cinco que eu tive também me deram problema. Aliás, me dão problema até hoje...! Mas é assim mesmo...
Adriana não estava interessa em ouvir dicas de uma mãe mais experiente, por isso, com muita educação, interrompeu a conversa e se retirou do banheiro. Dirigindo-se à sala de aula, ouviu rumores no corredor. “Ela é esquisita...!”, “Nunca olha pra trás!”, “Acho que é maluca!” , “Fala baixo, seu imbecil!”. Eram ex-alunos seus que agora estavam na quinta série. Adriana fingiu que não ouviu nada, mas sabia até onde cada um dos quatro alunos morava, e inclusive era amiga dos pais de dois deles, entretanto, preferiu não criar confusão. Sabia de sua fama e não ligava. Nada a faria olhar para trás novamente, pelo menos até que Ana fosse embora para sempre.
Após a aula, Adriana tomava um suco na cantina assistindo as últimas notícias locais. “Mais uma vítima foi encontrada morta com vários hematomas pelo corpo. Trata-se de um rapaz de vinte e seis anos, deficiente físico. Segundo a polícia, ele corresponde ao perfil das vítimas do Espartano, o assassino que só mata pessoas fracas e indefesas, geralmente deficientes físicos. Até agora contam treze mortes.”
- É mesmo um covarde... – disse a balconista com desdém.
- Deve ser algum bombadinho de academia... – comentou o seu assistente.
Adriana observou atenta a imagem do corpo. Era um jovem, tinha um futuro, e mesmo com uma das pernas atrofiadas o estudante de medicina João Henrique dos Santos estava disposto a superar não apenas este obstáculo, mas qualquer outro que pudesse surgir. Era um verdadeiro exemplo. No entanto, alguém muito mau e preconceituoso impediu que este futuro médico seguisse em frente. Essa história deixa qualquer pessoa abalada e revoltada. Mas, misteriosamente, Adriana não sentia nada, nem um traço de compaixão perante o sofrimento da família. Para ela era só mais um corpo. Isso não estava certo e ela mesma se impressionou com tamanha frieza.
Seu marido foi buscá-la de carro como fazia todos os dias. Ela falou das dores de cabeça.
- Se você não se sente bem deveria pedir uma dispensa médica – sugeriu ele dirigindo a atenção para ela, as lentes de seu óculos de armação clássica refletiam o perfil inexpressivo de Adriana e o trânsito que ele ignorou por poucos segundos.
- Rui, eu já disse que ainda não preciso... – retrucou ela – são apenas dores de cabeça, é normal.
- Ana, você é teimosa...!
- Já disse para não me chamar de Ana! – exclamou ela – Meu nome é Adriana!
- Calma querida! Eu esqueci que você odeia esse apelido. Ainda não sei porque! É tão normal...
- Ele me trás recordações ruins, você sabe!
- Eu também fui um jovem rebelde, isso é coisa da idade...
- Não... Você não era como eu...
O almoço servido na mesa era estrogonofe de camarão, o prato favorito de Adriana e uma especialidade de Dora, a doméstica, que já estava com eles desde quando Adriana engravidou. Rui não queria que sua espose fizesse esforço por isso pediu para sua mãe que lhe indicasse alguém para cuidar da casa. Adriana não gostou da idéia no início. Ela dizia que poderia cuidar da casa mesmo grávida, e, além disso, uma doméstica seria uma despesa a mais. Na verdade ela tinha um pouco de ciúmes, medo de Rui contratar uma moça do interior com um corpo ainda jovem. No entanto, quando viu Dora, uma senhora de sessenta anos, se sentiu aliviada. Para completar Dora cozinha bem.
- Sente-se bem, querida? – perguntou Rui.
Adriana virou sua atenção para ele com um meio sorriso.
- Sim... estou bem...
- Então porque não toca na comida? É estrogonofe de camarão! Você adora! – disse ele num tom preocupado.
- Não estou com muita fome hoje...
- Tudo bem, mas se estiver se sentindo mal, me liga, não importa a hora. Você e o bebê são a minha prioridade no momento.
Adriana voltou a olhar a comida, mas seus olhos fixaram-se na faca que segurada com a mão direita. A lâmina tremia sutilmente refletindo a luz do sol que entrava pela janela acima da pia. Sentiu-se longe dali, vagando por lembranças que se abriam como feridas há muito cicatrizadas. Lembrou-se da vez que esmagou o rosto do gatinho de estimação de uma prima usando uma pedra do tamanho de um punho adulto. Ela tinha oito anos. Ana, como gostava de ser chamada, nasceu com uma forte tendência à violência. Isso os seus colegas do ensino médio sabiam perfeitamente. Ela vivia isolada, pois todos a temiam. Nem mesmo os mais fortes se arriscavam. Houve um que passou a mão na sua perna perto da cantina. Teve os dois dentes da frente quebrados e muitos arranhões no rosto. Aos dezesseis anos, Ana passou a colecionar facas de combate. Tinha desde canivetes pequenos até aquelas facas retráteis. Tinha uma retrátil de cabo emborrachado, que era sua favorita e sempre a carregava escondida no bolso da calça. Seus pais mandavam-na a psicólogos, mas de nada adiantava. Ana era um ente demoníaco escondido atrás do rosto de uma bela garota, que só não era mais bonita porque não se importava em chamar a atenção pela aparência. Não ligava para roupas da moda ou maquiagem.
- O que está fazendo? – perguntou Rui num impulso perplexo.
Adriana voltou ao tempo atual. Via que passava a lâmina da faca no punho esquerdo, bem leve e devagar numa brincadeira sádica e perigosa.
Dora também viu e não conseguia pronunciar uma palavra. Ofegava bastante e estava com os olhos arregalados e a boca aberta num gesto de espanto. Colocou a mão no peito como se sentisse alguma dor no coração.
- Querida, me de a faca – pediu Rui com muita calma, mas sem deixar de transparecer o medo – isso é perigoso e você pode se machucar.
Adriana soltou a faca na mesa rapidamente. Suas mãos tremiam muito. Ela não fazia idéia do como fez aquilo, era como se estivesse acabado de acordar na beira de um precipício.
Após o almoço, Adriana foi tomar banho, como sempre fazia. Ensaboava o ombro, o pescoço, as curvas, os seios e as coxas grossas com tanta delicadeza e sensualidade que faria qualquer herói mitológico esquecer as sereias e ninfas. Quando começava a ensaboar as mãos sentiu seus punhos coçarem. Lavou-os para tirar a espuma e viu uma cicatriz em cada um. Assustada, deixou o sabonete cair. Jurava que aquelas feridas haviam desaparecido. Com todos esses anos só haviam sobrado linhas brancas perceptíveis somente aos olhos mais atentos. Mas agora, elas estavam bem evidentes como se fossem feitas há poucos dias. Sentiu um leve toque de mãos nas costas. Ela sabia que não deveria olhar, mas, talvez quisesse desafiar o medo, pelo menos uma vez, e olhou para trás com o canto dos olhos. Não se surpreendeu ao ver Ana novamente com a mesma camisola azul de pacientes de hospital. Também não se surpreendeu quando ela lhe ofereceu aquela faca.
- Não, você não vai machucar a gente! – gritou Adriana – Não vou fazer isso de novo!
Três ou quatro batidas atrás da porta fizeram-na se conter.
- Querida! O que aconteceu? Tá tudo bem? – perguntou Rui.
Ana havia desaparecido.
- Está tudo bem... foi só uma barata... só isso! – disse Adriana.
- Como ela está?
- Ela está bem... – disse Rui ao telefone.
- Está acordada?
- Não, já está dormindo...
- Poxa, eu estava com saudades e queria falar um pouco com ela... Bom, não tem problema. Mas ela está tomando todos os remédios?
- Está Dona Célia, e eu não saio de perto até vê-la engolir o comprimido.
- Cuide bem da minha filha, heim! Você sabe que ela tem problemas.
- Estou dedicando todo o meu tempo a isso, pode ficar tranqüila.
- E o meu neto?
- Ele está bem protegido na barriga da mãe.
- Eu tenho medo que ela tenha uma recaída e ponha em risco a vida do bebê.
- Isso não vai acontecer, eu garanto.
- É a minha mãe? – perguntou Adriana, havia escutado toda a conversa do quarto.
- Sim, mas ela acabou de desligar... – disse Rui desligando o telefone.
- O que ela queria?
Num tom irônico Rui respondeu:
- O de sempre, saber como está a filhinha dela e o neto.
- Por que não me chamou?
Rui a olhou nos olhos e com um sorriso disse num tom carinhoso.
- Ora meu amor, você tem que descansar... Ela pode ligar outra hora, mas agora eu acho melhor você voltar para o quarto e dormir. – disse dando um tapinha na barriga dela.
- Mas, não está na hora dos meus remédios?
- Ah, sim, é verdade, os seus remédios... vou chamar a Dora.
- Ela já saiu. Acho melhor eu ir buscar.
- Não, não – disse Rui conduzindo-a até o quarto – deixa que eu cuido disso.
Adriana observava o comprimido. Sentia uma vontade de jogá-lo fora. Desde quando as perseguições de Ana aumentaram ela não conseguia engolir nenhum comprimido. Rui já havia voltado para o trabalho e ela teria toda a liberdade de jogar o remédio na privada como estava se acostumando a fazer, mas dessa vez tentava resistir, sabia que precisava daquilo para manter Ana longe de seu corpo, e de sua família. Entretanto, parece que Ana já tinha um certo controle porque, subitamente Adriana atirou o comprimido na parede que se desfez em incontáveis migalhas. De longe parecia farinha.
As cortinas abertas deixavam fluir no quarto escuro a luz do Sol que se escondia atrás dos mesmos telhados de todas as tardes. Sentada na cama perto da janela, Adriana analisava, curiosa, as cicatrizes nos pulsos com se observasse fotografias perdidas.
- Pegue a faca... – sussurrou aquela mesma voz que lhe assombrava desde o hospício.
- Me deixe em paz! Pela amordeus!
- Pegue a faca... – insistiu a voz.
As cicatrizes suscitaram na mente de Adriana devaneios esquecidos. O quarto se transformou no banheiro da sua antiga casa. A porta estava trancada. Tudo havia sido planejado minuciosamente. Seus pais estavam num jantar. A faxineira já havia ido embora também. Mesmo assim, Ana sentia um calafrio no corpo inteiro, o que fazia sua mão direita tremer a faca. Ia ser rápido. Em poucos minutos estaria livre dessa vida monótona.
Os cortes foram precisos e quase indolores, talvez porque metade da dor encontra-se na mente das pessoas. Linhas de sangue manchavam o branco do piso. A hemorragia acelerou. As forças se dissiparam e Ana tombou num barulho seco.
Ao acordar estava numa cama de hospital. Sua mãe, sentada ao lado, encontrava-se aos prantos com as mãos no rosto. Através da janela de vidro via seu pai conversando com o médico no corredor. Apesar de não ouvir a conversa poderia perceber que era um assunto grave; seu pai parecia calmo, mas seus gestos bruscos revelavam um nervosismo contido.
Passou mais alguns dias no hospital recebendo sangue de parentes, vizinhos e amigos da família. Recebeu a visita de alguns. Eles pareciam ter feito aquilo mais por seus pais do que por ela. Essa hipótese tornava-se evidente na maneira estranha como a olhavam. Não precisariam chamá-la de maluca, problemática ou suicida, só pelos olhares podia-se muito bem ler seus pensamentos. Ao sair do hospital foi internada numa clínica psiquiátrica. Submeteram-na a drogas e terapias. Mas nunca estava sozinha. Ana se negava a ir embora e abandonar Adriana nesse mundo hostil. Adriana tinha delírios freqüentes com Ana reclamando da injustiça de que estava sendo vítima. Eloqüentemente, ela convencia Adriana de que elas eram uma só e por isso precisavam uma da outra e não conseguiriam viver separadas. Ana lutou bastante até que as medicações se tornaram mais fortes, fazendo-a desaparecer aos poucos, mas prometeu que todas as vezes que Adriana olhasse para trás, ela estaria lá, tomando o lugar de sua sombra.
Depois de bastante tempo, Adriana pôde voltar à sua vida, dessa vez sem a essência maligna que a incitava a cometer atos violentos desde a infância. Estudou bastante, fez boas amizades na faculdade e aos vinte e cinco anos se formou como professora de ensino fundamental. Aceitou o pedido de casamento do primeiro homem que a tratou com dignidade e respeito, e que não temia sua fama de louca. Rui não é um homem bonito. É magro, testudo e usa óculos de velho, mas isso nunca incomodou Adriana porque os fortes de academia nunca lhe atraíram. Rui havia acabado de se tornar executivo de uma grande empresa e com a ajuda dos pais comprou uma casa para ele, sua esposa e os futuros filhos. O primeiro havia sido concebido há alguns meses.
Mesmo com a nova vida, Adriana nunca esquecera a promessa de Ana, por isso nunca olhava para trás. Houve vezes que ela viu Ana pelo espelho sorrindo atrás de sua costa, ou escutava os seus sussurros. Mas agora era bem pior. Há poucos dias, passou a ser assombrada diariamente. Estava pensando em voltar a procurar ajuda psiquiátrica, mas não queria passar por todo aquele sofrimento novamente. Acreditou (ou tentou se convencer) que era tudo conseqüência da gravidez, talvez depois que seu filho nascesse, Ana a deixaria em paz. Mas no fundo ela sabia que estava enganada.
Os devaneios passaram e Adriana voltou ao presente. Chorava sentada na cadeira implorando para que aquela entidade maligna fosse embora. Atendendo aos apelos os sussurros cessaram. A presença de Ana já não era mais sentida. Adriana se levantou devagar suspirando aliviada. Dirigiu-se ao banheiro. Passou perto do espelho grande do quarto onde por menos de um segundo surgiu um espectro acompanhando-a. Lavou o rosto e deitou-se na cama de lado. Acariciou a barriga e dormiu com o pôr-do-sol.
Sua mente foi levada a um cenário onírico que lembrava o jardim de sua casa. Viu um garotinho sentado perto das rosas. Deveria ter uns três anos.
- Mamãe... – chamou ele.
Adriana dirigiu-se a ele sorrindo.
- Do que você tá brincando, meu bem...? – perguntou ela.
O menino olhou para sua mãe com um doce sorriso. Exibindo as mãozinhas disse – Olha... – Seus pulsos estavam cortados e com manchas vermelhas derramando sangue. Ao lado de suas pernas encontrava-se uma faca com uma linha rubra no fio e pingos vermelhos na lâmina, a mesma faca que foi o objeto inseparável de Adriana na adolescência. Ela acordou aos gritos.
- Está tudo bem, querida? – perguntou Rui, calmamente. Estava sentado ao seu lado, dessa vez ele não parecia assustado com a atitude dela como das outras vezes – Já sei, foi só mais um pesadelo... – continuou ele com uma estranha ironia. Seu rosto estava coberto pela escuridão do quarto e apenas a silhueta e partes de seu corpo podiam ser vistas graças à luz da Lua, que iluminava somente um pequeno e limitado espaço, deixando o restante do quarto oculto na escuridão. Havia algo de errado, talvez nas palavras ou na atitude indiferente dele. Por um momento Adriana não reconheceu aquele homem.
- Estou bem... não precisa se preocupar...! – respondeu ela, afastando-se para o canto da cama.
- Está tomando todos os remédios?
- Sim... claro... – seus lábios estavam secos e tremiam bastante.
- Bom... – disse Rui – Fiquei sabendo do grito que você deu hoje no banheiro da escola...
Adriana se afastou mais um pouco.
- Por que está se afastando? Está com medo de quê?
- Nada... Só que você parece estranho...
- Sim... Sou um estranho pra você – disse Rui – Sabe querida, hoje pela manhã, quando você disse que não eu não era como você, estava enganada. Somos muito mais parecidos do que imagina. Sei porque tem medo de olhar para trás e porque odeia quando te chamam de Ana. Sei também que passou um tempo no hospício. Você se esforçou para deixar de ser quem realmente é. Isso sempre me entristeceu. De alguma maneira encontrei em você uma pessoa igual a mim, que me entende, e acreditava que um dia voltaria a ser a querida Ana novamente. Sempre quis que a Ana me desse um filho, um novo demônio para continuar meu trabalho – aos poucos seu tom de voz ia tornando-se ameaçador – Matei muitas pessoas, todas fracas como você, e nunca descobri o significado da palavra remorso. Tudo que queria era ter uma família como eu, uma família que se empenhasse nas artes da tortura e assassinato, e que eliminasse qualquer inválido da nossa sociedade. E eu fiz de tudo para trazer a Ana de volta, até troquei os remédios por compridos de farinha. Mas mesmo assim, você estragou tudo! Você esqueceu quem realmente é! - gritou ele.
Adriana levantou-se da cama assustada e tentou fugir pela porta, mas Rui se antecipou e bloqueou a única saída com seu corpo.
- Se afaste de nós! Seu maluco! – gritou ela com as mãos na barriga tentando defender o filho.
Rui sorriu sadicamente.
- Você me decepciona cada vez mais... mesmo sabendo como se tornou fraca, por um instante eu imaginei que reagiria. Mas, ao invés disso, você se esconde como uma galinha. Provavelmente nosso filho corre o risco de ser fraco também. Isso seria uma decepção ainda maior. Pelo jeito, a única coisa que me resta agora é matar os dois. – subitamente Rui colocou as mãos no pescoço de Adriana apertando com muita violência. Ela defendia-se com socos que não faziam efeito. Rui ignorava os golpes sem aparentar sentir um mínimo de dor – Calma Adriana, em considerarão ao tempo que passamos juntos, sua morte vai ser rápida e não sentirá muita dor. Mas se tentar resistir vai ser pior.
Mais preocupada com a criança que carregava do que consigo mesma, Adriana dobrou os dedos da mão direita em forma de garra. Suas unhas estavam grandes. Rapidamente arranhou o rosto de Rui causando quatro cortes profundos que demorariam a sarar.
- Sua vadia! – ele gritou soltando as mãos do pescoço dela.
Adriana aproveitou a oportunidade e correu em direção ao banheiro do quarto. Trancou-se no momento em que Rui tentava alcançá-la. Ele bateu na porta várias vezes gritando palavrões e fazendo ameaças. Adriana se afastou trêmula para perto da pia. Sabia que ele daria um jeito de entrar. Foi então que Rui jogou seu corpo contra a porta que cedeu. Adriana gritou correndo para perto do chuveiro. Rui caminhou calmamente para dentro do banheiro apreciando o gosto daquele jogo de gato e rato. Com um toque brusco acendeu a luz. Seu sorriso sádico era visível agora. Adriana estava encolhida dentro do box do chuveiro, ofegando desesperadamente. Rapidamente Rui segurou-a pelo braço direito puxando-a para cima com força. Empurrou-a contra a parede do chuveiro e deu um soco em seu rosto. Chutou-a várias vezes chamando-a por nomes vulgares. Adriana encolhia-se chorando e tentando defender a barriga. Rui levantou-a com força e começou a sufocá-la novamente.
Adriana sentia seus músculos amolecerem e quando estava prestes a se entregar para a morte, a mesma voz que a assombrou durante muitos anos sussurrou novamente ao seu ouvido:
- Pegue a faca...
Adriana, sem pensar duas vezes, levou a mão direita aberta para trás de sua costa. Sentiu os dedos suaves de Ana entregando-lhe a faca. Com as últimas forças Adriana desferiu um golpe mortal na barriga de Rui, depois, sem tirar a lâmina, rasgou a carne em sentido vertical, para cima. Com a boca aberta de espanto Rui cambaleou para trás, livrando sua barriga da lâmina com um barulho líquido. Inutilmente, colocou as mãos no corte para conter a hemorragia. O sangue escorria pelos dedos.
Ele não gritou e tampouco tentou atacar novamente. Como último gesto, contemplou sua esposa assassina com um diabólico sorriso de admiração – Seja um bom exemplo para o nosso filho... – foram suas últimas palavras antes de tombar morto.
- Agora vocês estão salvos... – disse Ana.
Adriana, ainda trêmula e ofegante, olhou para trás. Não sabia porque fez isso, talvez para agradecer. Olhou para Ana que sorria satisfeita. Soltou a faca, um peso que não agüentava carregar mais, em seguida acariciou a barriga com muito cuidado e carinho.