domingo, maio 10, 2009

MÁSCARAS DIGITAIS OU A TELENOVELA SINTÉTICA - Conto

MÁSCARAS DIGITAIS OU A TELENOVELA SINTÉTICA Por R. Moreno®

- Mara, meu amor – disse o galã – Não é nada que você está pensando. Eu estava apenas...
- Não diga mais nada! – interrompeu Mara virando o rosto e escondendo-se atrás dos cabelos ruivos – não quero saber o que você faz da vida, Markus! Não estamos mais juntos. Se você quer ficar com a minha irmã por mim tudo bem...
- Mas Mara... – disse ele com aquela voz que deixava milhares de mulheres se derretendo – você é tudo pra mim...
Mara estava andando de um lado para o outro na sala luxuosa. Parecia impaciente, sem saber o que dizer.
- Eu sei – balbuciou ela – mas você sabe que estou casada agora e não posso...
- Fala errada – interrompeu o galã com uma voz sintética de robô.
- Droga – disse Mara – eu esqueci – olhou para o galã que permanecia imóvel perto do sofá – Vamos tentar de novo. E nem ouse dizer a minha fala. Eu sei que posso me lembrar. É só esperar uns segundos. Peraí...
Ainda imóvel com o olhar parado no vazio, sem piscar, o galã disse:
- Mara – a voz era bem familiar dessa vez, uma voz grossa sem toda aquela sensualidade – acho que já chega por hoje.
Todo o cenário começou a se desfazer numa névoa de dados. Mara tirou o capacete de realidade virtual e olhou séria para o rosto de Aluízio, seu marido.
- Eu estava indo bem... – resmungou ela.
- Eu sei disso – replicou ele – mas você já está há mais de três horas nesse negócio. Nem almoçou!
Ela olhou para o marido. Seu rosto era muito quadrado, ele era menor que ela alguns centímetros e seus olhos eram pretos. Bem diferente do galã Markus de olhos castanho-claros que ela adorava.
- Estou sem fome... – disse ela numa voz rasgada.
Aluízio a abraçou.
- Sei que você adora essas telenovelas interativas, mas tem que parar de querer viver outra vida.
Mara franziu o cenho e olhou para ele.
- Mas não é isso que todo mundo faz? Inclusive nós fizemos!
- Mas é diferente. Isso não é realidade virtual.
- Depende do ponto de vista.
- Não quero discutir isso – Aluizio soltou os braços da cintura dela e vestiu a camisa social branca que ele sempre usa para o trabalho – Tenho que voltar para a clínica. Está cheio de gente querendo mudar de identidade esses tempos. Não estamos dando conta de todos.
- Deve ser legal trabalhar num laboratório de troca de identidade. Saber o segredo das pessoas...
- Não é bem assim. Quando alguém muda de identidade temos que apagar todas as informações da vida anterior dessa pessoa e devemos apagar nossas memórias sobre isso também.
- Não é perigoso? Quer dizer, algum bandido foragido pode mudar de identidade pra escapar da polícia.
Aluizio quis rir da ingenuidade da esposa. Em pleno ano 2115 e ela ainda pensava como as pessoas de três gerações atrás.
- Assim você me envergonha – brincou ele – o que muda é apenas a personalidade. O rosto de procurado continua o mesmo. Se bem que na prática a policia costuma fazer vista grossa. Afinal, se o bandido mudar de personalidade vai se tornar um cidadão direito e não vai mais dar trabalho pra ninguém. Isso poupa espaço nos presídios.
- Mas é injusto! – protestou Mara balançando o dedo indicador direito para cima – Ele comete os crimes e tem que pagar por eles.
- Você está me envergonhado de novo, querida – retrucou Aluizio dando um nó na gravata em frente ao espelho – Todos, inclusive você, sabem que essa é a melhor forma de re-socialização já criada. Só continua bandido quem quer.
E era verdade. Apesar de Mara e de outras centenas de pessoas não verem isso com bons olhos todos tinham que aceitar. O governo investia uma verba altíssima para apoiar os criminosos que se entregassem e quisessem mudar de identidade para se tornar pessoas de bem. O governo concedia um emprego razoável e emprestava uma casa padronizada onde o ex-criminoso poderia ficar um tempo até encontrar um lugar para morar por conta própria. Porém, logo quando a operação TI (Troca de Identidade) foi criada havia muitos problemas. As pessoas acordavam sem saber quem eram e completamente perdidas no mundo. Por isso quando o ex-criminoso acordava confuso e sem ninguém acabava voltando para o mundo do crime. Mas com o avanço da tecnologia esse problema já não existia mais. Hoje, após a operação o paciente ainda passa uns meses tento uma vaga idéia de quem ele era e o que pretendia com essa nova identidade. É o tempo necessário para ele organizar sua vida.
Quando Aluizio saiu para o trabalho Mara ficou refletindo sobre essa última discussão deles. Ela ainda sabia muito pouco em relação a TI. Tudo que ela sabia era que era uma operação complicada que envolvia chips no cérebro, mas não conseguia dar uma explicação muito complexa porque nunca fora muito de ler revistas cientificas. Aliás, tecnologia e ciência eram assuntos que lhe davam sono. Na verdade muitas coisas lhe davam sono. Tudo que ela gostava era de ficar em casa assistindo suas telenovelas interativas e participando como a personagem principal. Todavia, sabia que Aluizio tinha razão quando dizia que ela andava viciada nisso. Esquecia de tudo que não fossem essas novelas. Suas amigas, se é que ainda as tinha, não a visitavam mais, pois ela as evitava. Não queria mais saber de ler revistas de moda e nem seus romances eletrônicos que ela adorava, mas que agora permaneciam engavetados na memória do computador central da casa. Além disso, Mara já não se alimentava direito e havia emagrecido uns dez quilos.
Decidiu comer alguma coisa, comida rápida de preferência.
- Margarete – chamou ela. Um holograma de uma simpática dona de casa apareceu na sua frente.
- Diga senhora – perguntou o holograma. Sua voz era doce e até razoavelmente humana.
- Prepare um sanduíche de bife sintético com creme de queixo e suco de laranja-maçã.
- Mas senhora... – disse o holograma numa coloração azul-claro que significava preocupação – Isso não é almoço. A senhora precisa se alimentar direito.
Com uma voz tranqüila Mara pediu:
- Não me questione, Margarete – depois de um momento de silêncio como se refletisse sobre algo continuou – por favor, faço o que eu peço.
O holograma se tornou verde que significa “ordem pronta para ser cumprida”.
- Tudo bem, senhora – a simpática dona de casa desapareceu. A cozinha inteligente faria tudo automaticamente.
Mara queria pensar em outra coisa, mas estava muito ansiosa para saber o final da novela. As telenovelas interativas são um jogo onde as pessoas podem interagir e suas ações mudarão o rumo da história. No entanto, era necessário ensaiar algumas falas pré-definidas para haver coerência na trama e evitar contradições. Mara decidiu ensaiar suas falas.
- Eu sei – disse com convicção – mas estou casada agora e... – as palavras sumiram de novo – E... sei que ele vai me fazer muito mais feliz que qualquer outro homem, inclusive você, Markus – sorriu triunfante – É isso! Agora falta só ensaiar mais – seus olhos voaram pela sala e pousaram no capacete de realidade virtual em cima da mesa de jantar.
Não, só depois do almoço, pensou ela, inquieta. Ah, que se dane!
Levantou-se do sofá rapidamente e pegou o capacete. Colocou-o e viu a tela virtual branca. Com o pensamento ela ligou o aparelho e viu a tela branca se tornar maior e maior, até preencher todo o espaço que sua visão poderia alcançar.
A música de abertura da novela tocou. O título era “As Faces do Amor”. O cenário da sala luxuosa surgiu. Mara estava usando um belo vestido social. A sua frente se encontrava Markus, o galã, vestido num terno fino, sorrindo o sorriso mais bonito que ela já viu na vida. Aquele sorriso falou:
- Você é tudo pra mim...
- Eu sei – disse ela, convicta – mas estou casada agora e sei que ele me vai me fazer muito mais feliz que qualquer outro homem, inclusive você, Markus!
O belo sorriso se alargou mais assumindo uma aparência diabólica.
- Você acha que conhece seu marido? – perguntou o galã.
Mara não se lembrava daquela fala. Sobressaltada perguntou:
- O que você quer dizer?
- Se quer saber a verdade, venha comigo – Markus estendeu a mão a ela – Todos no jantar estão nós aguardando. Você precisa saber a verdade.
Ela pegou a mão dele.
Eles saíram da sala e foram até o salão de festas onde várias pessoas bem vestidas bebiam uísque e comiam salgadinhos exóticos oferecidos pelos garçons. Mara reconheceu o rosto de alguns. Artistas famosos que emprestavam suas fisionomias para serem digitalizadas e fazerem parte da fantasia de milhares de pessoas em todo o mundo. Até suas interpretações eram transformadas em dados para seus respectivos personagens tornarem esse mundo de sonhos ainda mais real. Todo aquele espetáculo caro e brilhando como um cordão de pérolas era preenchido por uma bossa-nova instrumental e por conversas e risadas civilizadas, tudo com muita classe e etiqueta.
- Markus, onde você esteve? – perguntou uma voz feminina. Era a irmã de Mara na novela. Uma moça muito bonita e jovem, mas já nutrindo um sentimento de ciúmes pela irmã mais velha.
Ela não cumprimentou Mara.
- Landa... – sorriu ele – que bom ver você.
- O que vocês estavam fazendo? – perguntou a garota dirigindo um olhar hostil e desconfiado para Mara.
- Estávamos apenas conversando – disse Mara, séria.
- Será que você não se contenta com seu marido? – gritou a garota.
- Landa, se acalme – pediu Markus.
- Não! – berrou a garota. Todos olharam surpreendidos. Landa fitou o rosto lívido de Mara – Você sempre foi a favorita de todos. Dos nossos pais, dos nossos parentes e até... – ela balbuciou um pouco – e até de Markus. Eu sei que ele ainda gosta de você – suas lágrimas eram visíveis – Mas isso não é justo! Temos que acabar com essa farsa. Esta na hora de saber toda a verdade sobre quem realmente você é!
- Já chega, Landa! – gritou Markus.
A garota se acalmou, mas ainda ofegava muito. Markus olhou ao redor para todos os convidados. Parecia envergonhado por ter perdido a paciência. Em seguida olhou para Mara.
- Você saberá de tudo que precisa saber – disse ele numa voz calma – mas não dessa maneira. Não por essa sua irmã invejosa. E sim, por eles.
Um casal com cerca de cinqüenta anos se aproximou.
- Quem são eles? – perguntou Mara um pouco assustada.
Markus sorriu com os lábios unidos.
- São seus pais.
- Mas como? Meus pais estão viajando pela Europa.
- Não – disse Markus – aqueles são apenas dois personagens com rostos famosos. Esses são os seus verdadeiros pais.
Um flash de lembranças perdidas invadiu a mente de Mara. Ela se via pequena brincando no colo do pai, depois fazendo compras com a mãe.
- Olá querida – disse seu pai. Um homem baixo com sobrancelhas grossas e brancas. Algumas rugas no rosto. Cabelos brancos com algumas partes ainda um pouco escurecidas.
- Minha filha linda! – sorriu sua mãe. Ruiva, com muita maquiagem e um largo sorriso – minha pequena Alana – não se conteve e abraçou a filha.
Mara ficou imóvel e confusa.
Markus parecia contente em reunir aquela família. Mas estava na hora de contar toda a verdade.
- Esses são Walter e Eva Alcântara – começou ele – São pessoas boas, que sempre cuidaram bem de você quando era pequena. Alana, se você pudesse se lembrar o quanto era feliz ao lado deles...
Seus pais riam. Tudo parecia ensaiado para Mara.
- Verdade! – disse sua mãe ainda com aquele sorriso enorme – você era muito engraçadinha. Todos a adoravam. Riam muito de suas brincadeiras.
- Vocês são mesmo os meus pais? – perguntou Mara com a testa franzida - Mas como isso pode ser possível? A memória da minha antiga identidade foi apagada. Não pode ser verdade!
- Mas é, minha filha – disse sua mãe, o sorriso havia se apagado e uma expressão de condolência se formava em seu rosto – Nós fomos covardemente assassinados em um assalto.
- E advinha quem foi o assassino? – perguntou Markus.
Mara sentiu o coração martelar. As lembranças vinham rápidas e violentas. Mara via o assalto, o rosto do assaltante. Era Aluizio, seu próprio marido!
- Oh, meu Deus! – gemeu ela.
- Se contenha, minha filha – disse sua mãe abraçando-a – está tudo bem – voltou a sorrir, seus olhos estavam úmidos.
- Nós estamos bem agora que você voltou – disse seu pai se aproximando.
- Ora, contem logo toda a maldita verdade pra ela? – gritou Landa – ela também ajudou a matar os próprios pais! Ela e o namorado, que se chamava Max, mataram os pais dela para ficar com a herança! Ela é louca! Assassina!
As palavras de Landa se misturaram as recordações perturbadoras de Mara, que tremia, sem saber o que fazer. Ela realmente havia conspirado contra os pais. Agora ela via como era ambiciosa e má. Via todas as cenas. Ela e Max conversando sobre como deveriam agir. Depois via o carro de seus pais saindo da garagem e sendo abordado por um assaltante que na verdade era Max disfarçado. Ela assistia tudo na sacada de seu quarto rindo enquanto seus pais morriam. Depois interpretou o papel de órfã traumatizada para a polícia. No enterro chorou lágrimas falsas quando era consolada pelos parentes e amigos. Algumas semanas depois viajava para a Itália com Max. Eles estavam ricos, muito ricos. Mas os investigadores os desmascaram alguns meses depois. Foram deportados para o Brasil e condenados. Porém, como tinham muito dinheiro conseguiram comprar alguns contatos entre as autoridades e se submeteram a operação TI. Ficaram alguns meses ainda com aquelas lembranças. Sabiam que tinham muito dinheiro e que deveriam investir. Max decidiu abrir uma clínica de TI. Um empreendimento que trouxe um rápido retorno. Hoje eles vivem muito bem, mas com o sangue de seus próprios pais.
Mara sentiu seus olhos cheios de água e as lágrimas começaram a descer.
- Nós sabemos que a culpa não foi sua – disse sua mãe a consolando – você foi uma vítima como nós.
- O Max a manipulou – disse seu pai revoltado - Ele é o verdadeiro culpado!
Mara limpou as lágrimas.
- O que eu posso fazer por vocês?
- Queremos que você o mate – disse sua mãe.
- Mas eu não posso! Ele é meu marido!
- E nós somos seus pais! – gritou seu pai – Mate-o por nós!
- Eu não sei se consigo...
- Claro que consegue – disse a mãe – enforque-o enquanto ele estiver dormindo, envenene sua comida, contrate alguém pra fazer o serviço, mas mate!
- Esse é o certo a fazer – disse Markus – mate seu marido e venha viver conosco, comigo...
Landa se intrometeu.
- E eu? Como pode me deixar por essa assassina que matou os próprios pais?
- Landa – disse Markus – você é uma criança e já aprontou demais por hoje. Agora desapareça.
Landa desapareceu.
- Como você fez isso? – perguntou Mara.
- Aqui nesse mundo eu governo – respondeu ele acariciando o rosto dela – esse é o meu reino e posso fazer o que quiser. E se você quiser pode ser a minha rainha.
- Seria ótimo! – disse a mãe orgulhosa – minha filha, o Markus é um excelente rapaz, bonito, cavalheiro e dono de tudo isso que você pode ver.
- Vamos, querida – disse o pai – mate aquele assassino e venha viver conosco. Vamos ser uma família feliz de novo.
- Senhora – disse uma voz feminina ecoando pelo salão. Os outros convidados, um pouco assustados, olharam para os lados – Senhora, seu almoço vai esfriar.
Tudo ao redor se tornou branco. Mara tirou o capacete.
- Não gosto de ser interrompida no meio da minha novela.
- Sinto muito, senhora – disse o holograma.
- Tudo bem, Margarete. Agora me deixe só.
O holograma desapareceu.
Mara olhou para a bandeja que o pequeno robô - doméstico carregava. O sanduíche ainda cheirava bem. Cheiro de fritura. O robô, que mais parecia um carrinho, se aproximou.
Tarde da noite Aluizio chegou, parecia cansado. Tirou o terno, desabotoou a camisa e quando estava tirando a calça percebeu Mara na porta do quarto o observando.
- Como foi o dia no trabalho? – perguntou ela.
- O de sempre... – disse ele desabotoando os sapatos – mas estamos com planos de aumentar o laboratório. A demanda está grande – olhou para ela – E você? Fez o que o dia inteiro? – depois sorriu e com bom humor disse – Já sei, não fez outra coisa a não ser atuar naquela novela interativa.
- Hoje foi o último capítulo – disse ela sorrindo.
- E como terminou?
- Você nem acredita – com um ar de mistério ela continuou – mas nós na verdade somos Alana e Max, um casal de namorados psicopatas e matamos os meus pais para ficar com o dinheiro deles. Depois nós submetemos a operação TI para esquecer tudo e começar uma nova vida. Foi com esse dinheiro que você abriu a clínica.
- Hahahaha.
- É sério – riu ela –nós somos assassinos.
- Essas novelas interativas estão ficando cada vez mais criativas – disse ele – Já estão inventando cada coisa!
- Se você acha isso imagina se visse os fantasmas deles falando comigo! – disse ela com um meio sorriso - O Markus ainda revelou que meus pais na novela são apenas “personagens com rostos famosos” e aqueles fantasmas eram os meus verdadeiros pais!
- Meu Deus! – sorriu ele – Isso é muito sobrenatural!
Eles riram juntos. Mas depois ficaram em silêncio.
-Tem certeza que as informações das nossas antigas identidades foram completamente deletadas? – perguntou ela.
- Mas é claro – respondeu ele – Por quê?
- Não é nada...
- Você não está levando essa história de assassinato a sério, está? – perguntou ele com um sorriso.
- Claro que não.