quinta-feira, dezembro 30, 2010

QUEBRANDO O ENCANTO - CONTO

QUEBRANDO O ENCANTO

Banhado pelas melódicas brisas do mar, Anselmo, sentado em seu banco particular na porta de casa, observava os pontos luminosos dos barcos sumindo no horizonte das águas escuras. As estrelas estavam fracas e apenas a lua iluminava aquela praia deserta que o professor aposentado adotou como seu lar há mais de três anos quando seu caçula casou. Sua esposa, que agora jaz debaixo da terra, aprovaria a solidão feliz do marido que já viveu muito e agora só quer um tempo sozinho, longe do barulho e infortúnio da capital. Ali, naquele canto afastado da civilização agitada, ele desfrutava todas as noites daquela paisagem de barcos de pesca, nuvens cinzentas e de ondas barulhentas que explodiam carinhosas na areia. Vez por outra um casal de mãos dadas ou um pequeno grupo de crianças jogando bola apareciam para dar mais vida àquele cenário de paz. Mas essa rotina agradável – e para quem ver de fora um tanto monótona, talvez – tomaria um rumo diferente esta noite.

Talvez estivesse entretido com seus pensamentos e por isso nem a percebeu saindo das ondas, mas ela provavelmente veio do mar, por mais estranho que isso pudesse parecer. Não havia ninguém àquela hora na praia além dele. Anselmo só notou aquela jovem se aproximando quando ela já estava em sua direção como se atraída por algum feitiço irresistível. Anselmo preparou-se para receber tão jovem moça que poderia estar perdida e precisando de uma informação ou até uma ligação para seus pais. Qual não foi sua surpresa quando percebeu que ela estava completamente nua! Seria uma maluca? Será que sofreu algum tipo de abuso? Anselmo adiantou-se em correr para dentro de casa e buscar uma camisola que sua neta havia esquecido nas últimas férias. Voltou para frente de casa e a moça já estava lá, parada e sem demonstrar qualquer pudor por estar como veio ao mundo como se andar desse jeito fosse a coisa mais natural. Mesmo assim Anselmo como bom cavalheiro que era lhe ofereceu a camisola de sua neta. A moça, calada, pareceu não compreender o que era aquilo, mas em seguida, como por instinto, vestiu calmamente. “Aconteceu alguma coisa?”, foi tudo que Anselmo conseguiu dizer mesmo tento milhões de questionamentos latejando em sua cabeça. “Preciso de ajuda.”, as palavras dela fluíram robóticas. “Em que posso lhe ajudar, moça? Quer fazer uma ligação? Você já jantou? Quer que eu chame a polícia?”. “Cure minha maldição.”. Ao ouvir essa frase, Anselmo teve certeza de que só poderia se tratar de uma louca, mas como bom cristão, estava disposto a ajudá-la em qualquer coisa que fosse. Convidou-a para entrar, o que ela fez sem demonstrar qualquer receio. Dentro de casa ele lhe ofereceu comida, ela disse que já havia se alimentado, só queria mesmo que ele a ajudasse a curar sua maldição. “Sim, moça, então diga que maldição é essa?”, perguntou Anselmo, claro que não acreditava em nenhum dos delírios da louca, mas se quisesse ajudá-la, o que de fato queria, deveria adentrar no mundo dela para, quem sabe, extrair informações sobre onde morava e o telefone para falar com seus pais. “Sou um monstro e preciso me libertar!”. Monstro? Ela era linda, morena parecendo uma índia, corpo belíssimo e andar sensual mesmo que um tanto mecânico. Mas insistiu que era um monstro horrível, mas que nem sempre fora assim. Ela disse que seu nome era Anaiá e que nasceu em um reino no fundo do mar e por ser a criatura mais adorável do reino foi desposada pelo príncipe que enamorou com sua beleza inigualável logo na primeira vez que a viu. Era para ser tudo perfeito em suas vidas, no entanto, uma rainha de outro reino que já havia oferecido sua filha em casamento para o príncipe, ofendida com a escolha do jovem recorreu a seus conhecimentos místicos, pois era filha de uma feiticeira poderosa e sabia de cor todas as fórmulas mágicas que sua mãe a ensinou. Com isso, Anaiá acordou transformada em uma criatura horrível e teve que fugir do reino para não ser tomada por um demônio. E desde desse dia ela se transforma em nesse monstro todos os dias quando o sol está dormindo e a escuridão reina soberana. Anselmo permaneceu sentado na poltrona da sala escutando atenciosamente, mas não acreditando em tais alucinações. Era uma louca, precisava de ajuda, só isso. Ela, como se tivesse percebido a incredulidade de seu anfitrião nos olhos, disse “Já que não acredita, vai ver. Esta na hora da transformação. Não se assuste com o que vai v...”. Antes que pudesse terminar a frase seu corpo começou a se contorcer com espasmos violentos que assustaram Anselmo. Ele correu para acudi-la, mas estancou a poucos centímetros da moça que se debatia no chão. Não era mais a moça. Aliás, não era um ser humano. Ele viu tudo, e por mais que não acreditasse seus olhos que já registraram muita coisa nessa longa vida nunca o enganaram. Várias manchas vermelhas como de queimadura apareciam no corpo da jovem, principalmente em suas coxas, aumentando rapidamente numa velocidade que fazia a pele rasgar, e por debaixo, onde deveria aparecer a carne nua das coxas, escamas verdes foram o que Anselmo viu com os olhos esbugalhados e o coração acelerado. Estava espantado demais para tirar qualquer conclusão racional naquele momento. Toda a pele da moça foi rasgada como se fosse um casulo. Os cabelos caíram todos. Sua cabeça tomou uma forma estranha, um pouco puxada pra frente, o nariz sumindo no rosto até sobrarem apenas dois pequenos orifícios. As bochechas cheias de saúde murcharam tornando a face cadavérica e dois cortes profundos se abriram em cada bochecha semelhantes aos encontrados nos peixes. Os dentes pequenos e tortos, mas pontudos como flecha. O busto estava magro com a caixa torácica aparecendo, e os seios perderam sua curva de baixo, transformando-se em pequenos cones escuros e sem mamilos. Mas o mais assustador era sem dúvida o par de olhos. Duas bolas de sangue negro pulando para fora do rosto como se tentassem fugir. Anselmo se afastou com o corpo oscilando de pavor, pronto para fugir desesperado, mas encantado demais como estava não poderia deixar aquele fenômeno sem uma explicação. Foi quando percebeu que o corpo da criatura estava maior e assim como o rosto a carne do corpo também havia murchado deixando os ossos dos braços – que agora pareciam maiores e desproporcionais ao resto do corpo – bruscamente colados à pele verde-musgo melada com um líquido, talvez muco. As pernas estavam cobertas de escamas lembrando uma cauda de peixe e ao lado de cada uma das canelas uma nadadeira larga que se colava ao pé – agora mais lembrando uma garra de dragão. A camisola agora estava aos pedaços, não suportou a metamorfose do corpo.

A criatura se levantou e foi nesse momento que Anselmo se libertou do encanto e disparou em direção a porta de saída. Mas antes que pudesse cruzar a porta e gritar por ajuda, outro encanto o estancou no caminho. Dessa vez era uma melodia agradável que o fez pensar nas maravilhas exóticas e paisagens divinas que podem ser encontradas no fundo do mar, ainda desconhecidas pelo homem. Imaginou-se nadando com peixes coloridos por caminhos escuros iluminados por outras espécies marinhas que emitiam luz como uma cidade à noite. Viu-se cruzando montanhas de continentes perdidos cobertas de algas como túmulos submersos de uma fauna pré-histórica escondida dos pesquisadores humanos. Era lá onde Anselmo gostaria de estar agora, junto com essa bela criatura que canta a melodia das conchas, porém mais doce e infinitamente mais profunda. A música cessou repentinamente e Anselmo sentiu-se tonto. Perdendo as forças jogou-se no sofá. Sentado, arfava devagar admirando monstruosidade maravilhosa daquele animal inclassificável pela ciência humana. Com uma voz grossa formada por milhares de vozes finas como de répteis primitivos tentando falar a língua dos homens, a criatura dos mais belos pesadelos falou “Não vou machucá-lo. Só quero que me ajude!”. Demorou um tempo para que a mente de Anselmo conseguisse processar aquele pedido. E ele se surpreendeu quando sentiu seus lábios se moverem. “Como posso ajudar?”. “Preciso que um homem muito corajoso derrame leite virgem de um seio que amamenta um primogênito em minha cabeça.” Tudo aquilo parecia um grande absurdo, mas Anselmo aceitou dizendo que o encontrasse no dia seguinte naquele mesmo horário na beira do mar. A criatura assentiu agradecida e correu curvada em direção a praia. Era rápida como um veado, mas seu instinto era como de onça, sempre atenta aos perigos do ambiente. A praia estava deserta, o que foi um alivio, pois Anselmo não desejaria que outra pessoa passasse pelo que ele havia acabado de passar. Viu a criatura pular nas ondas e desaparecer no mar.

No dia seguinte Anselmo passou a manhã inteira procurando uma mãe que amamentasse seu primeiro filho. Encontrou em frente a casa de um pescador, uma jovem que amamentava seu neném recém-nascido sentada num banco de tábua podre debaixo de uma árvore pequena. Anselmo perguntou se era o primeiro, com um sorriso a jovem respondeu que sim. Sem hesitar Anselmo fez o pedido. A moça se espantou, o pai dela, um pescador de idade avançada mas forte o suficiente para lhe quebrar os dentes, surgiu nesse momento e veio ter com Anselmo perguntando o que ele estava querendo de verdade. Anselmo se desculpou pela ousadia, mas explicou que estava com um neto doente em casa precisando de um pouco de leite. O pescador disse que levasse seu neto até lá que sua filha teria o maior prazer em amamentá-lo. Anselmo disse que não podia, pois o menino era muito frágil e não podia pegar sol. O pescador desconfiou ainda mais, entretanto, uns poucos minutos de reflexão foi suficiente para ele aceitar. Anselmo pagou com uma nota de cinquenta reais e saiu da casa do pescador com uma panela enferrujada cheia de leite. À noite, esperou Anaiá, ou o monstro. Sentiu-se o homem mais importante e corajoso do mundo, lembrou-se de quando era garoto e caçava cobras com os amigos no terreno baldio ao lado de sua casa. Era ele quem tinha essas idéias loucas. Anaiá apareceu, nua como da primeira vez. Não disse nada, nem um simples “boa noite”. Anselmo começou a ficar nervoso e ouviu o barulho da tampa da panela tremer. Controlou-se. Também não disse nada. Tudo correu como um ritual católico. Anaiá se ajoelhou à frente do homem corajoso que ela tanto procurou, fechou os olhos e recebeu um banho de leite em sua cabeça. Olhou para as mãos, parecia confusa. Levantou ainda se olhando. Até que finalmente sentiu os espasmos surgindo. Começou a se debater e Anselmo ficou assustado pensando se havia feito algo errado. A transformação teve inicio. A pele do corpo de rasgou, os cabelos caíram, a carne murchou e o demônio das profundezas do mar que se escondia no corpo dela apareceu. “Não se assuste, essa é minha verdadeira forma.”. Anselmo ficou mudo. “Obrigada pela sua ajuda. Nem todos vocês são monstros como eu pensava. Agora tenho que ir, minha família me aguarda. Adeus.”. Após dizer isso correu em direção ao mar onde gritos que pareciam de golfinhos, só que mais grossos e hostis a chamavam. E Anselmo ficou lá parado com a panela enferrujada firme nas mãos. Poderia pensar em muitas coisas naquele momento, mas só uma breve reflexão que o deixaria pensando por dias tomou conta de sua mente. “Será que eles temem os monstros que vivem na superfície?”

quinta-feira, setembro 23, 2010

O DIA DO OGRO - CONTO

O DIA DO OGRO Por Rodrigo Moreno

Alto, feio, corpulento e humilde são as características do ingênuo Ogro, que vive só numa casa em péssimas condições, isolada nos limites Cidade. Antigamente, Ogro assustava a todos, mas com o tempo as pessoas foram se acostumando a ele. Perceberam que é inofensivo apesar de seu tamanho, e que é um idiota, um grande idiota, que tenta impressionar, mas é um fracasso. Ogro é motivo de piada. Todos riem de sua aparência e comportamento. É alvo das piores brincadeiras, principalmente por parte das crianças que cresceram ouvindo o quanto devem detestar e odiar aquele ser diferente que vive na casa no fim da Cidade.

As crianças adoram pregar peças nele. A última foi quando o convidaram para conhecer o terrível Demônio do Lago. Contaram histórias assustadoras a respeito dele, dizendo que comia criancinhas e pequenos animais. Ogro ficou indignado com aquelas afirmações e resolveu dar uma lição nesse demônio para deixar o povo de sua amada cidade em paz. Ele foi até lá junto com as crianças e ao chegar perto do lago perguntou “Onde está este terrível demônio?”. As crianças segurando seus risinhos disseram “Olhe para a água. O demônio é você!” e todas as crianças riram, riram como os adultos, riram como as moças e como as senhoras, riram como o Destino ri o dia inteiro da infelicidade dessa criatura que todos chamam de Ogro. Ele olhou para o lago, viu a imagem de um homem com o rosto deformado, careca, dentes amarelos e grandes como um animal, saindo dos lábios grossos, roxos, uma corcunda enorme, braços enormes como de um urso, porém tortos, mal formados. Ogro se reconheceu como sendo a coisa mais feia e terrível do mundo. Naquela noite ele chorou bastante, e a Lua cintilante, amarela como seus dentes, ria de seu sofrimento. As estrelas pareciam comentar num idioma que não precisa de palavras como esse Ogro era feio, como era diferente dos demais. Algumas brilhavam complacentes, e a criatura as observava com o olhar vago, perdido. Lembrou então que dia era. Véspera do Dia do Ogro! Um regozijo tomou conta de seu coração esperançoso, e ele riu, gargalhou feliz, e toda a escuridão de sua casa desapareceu. Tudo ficou claro para ele. Brilhante. Bonito. Aquela já não era mais uma casa pobre, escura e fedorenta. Agora era o seu palácio. Um palácio pequeno sim, porém o mais bonito de todos. Via seu salão coberto de pessoas, todas sorrindo para ele, sorrisos bons, não aqueles que o fazem se sentir mal. Ogro se viu sentado no trono. Um rei bondoso e misericordioso. Ogro se desprendeu de suas fantasias para poder ir dormir. Queria acordar cedo para o grande dia. Deitou-se em sua cama de palha, se agasalhou com farrapos e dormiu ainda com aquele sorriso animalesco, que causava náuseas, mas que no fundo era apenas o sorriso de um menino.

O galo cantou, as luzes do sol entraram pelas frestas das janelas de madeira e caíram como o encanto de uma fada nos olhos fechados da criatura que hoje seria o homem mais feliz do mundo. Ogro acordou. Sentiu uma satisfação doce percorrer o seu enorme corpo e se levantou rápido - não queria perder um segundo de seu dia. Saiu as ruas cumprimentado a todos e todos retribuíam amavelmente, parabenizando-o por seu dia. As pessoas se dirigiam a ele por Majestade. Ele gargalhava, brincando, e dizia “Não precisem exagerar! Não sou um deus.” As crianças trouxeram cestas de frutas, as mais saborosas, para lhe dar de presente. Os homens trouxeram cachaça de boa qualidade, e as mulheres dançaram e cantaram para o seu rei sentado num trono de madeira enfeitado com flores feito pelos próprios moradores. Ogro contou piadas, todos riram e ele também ria, e percebia o quanto é bom rir junto com as pessoas quando elas não estão rindo de você. À noite fizeram um enorme jantar, só com frutas e vegetais - nada de animais indefesos mortos no Dia do Ogro, essa era uma exigência da Majestade. Ogro percebeu que o dia se esvaia rapidamente, isso trouxe uma grande tristeza, mas tentou dissimular. No fim da festa, todos se foram, o encanto acabou. Agora só no próximo ano. Até lá, ele perderia seu reinado e seria desprezado novamente. Ogro voltou bêbado para sua humilde casa, que agora já não era mais o palácio de seus sonhos, era só uma humilde, velha e fedorenta casa no fim da Cidade.

domingo, setembro 19, 2010

Olho Cego - conto

OLHO CEGO Por Rodrigo Moreno

Após o discurso bem planejado, Gilmar Furtado misturou-se ao povão abraçando cada voto em potencial. As pessoas se amontoavam ao redor dele, que era protegido por dois seguranças, e, logo atrás, vinha Gustavo Furtado, primo mais novo e assessor particular. No entanto, os três não impediam totalmente os eleitores de se aproximarem, apenas evitavam as aproximações bruscas. Gilmar sorria, demonstrando sua felicidade ao redor daquelas pessoas - mesmo que estivessem mal vestidos e com cheiro azedo, seriam eles que o tornariam o novo prefeito.

Alguns metros dali, na esquina, encontrava-se um sujeito parado escondido entre a sombra de um poste e o muro de uma padaria, fugindo do sol do meio-dia. Era nada mais que um detalhe naquele cenário. Quem o visse, o tomaria por um turista graças ao chapéu panamá, calça branca, camisa de flanela e óculos escuros de lentes redondas. Olho Cego estava preparado para o serviço. Pensou em fumar um cigarro antes, daria tempo, a experiência dizia isso. Acendeu um cigarro nos lábios rachados escondidos pelo bigode. Calculou a distância mentalmente, sem números ou fórmulas exatas. “Olha Cego”, às vezes ria quando se lembrava do apelido que ganhou após furar o olho de um bacana a uma distância que muitos consideram impossível. Ria mais ainda quando aquele veado do Betão falava “O único olho cego que eu conheço é o olho do c...”.

Esperou o melhor momento. Algumas pessoas fotografavam, outras perguntavam, e Gilmar era sempre receptivo. O momento estava chegando. Olho Cego não sabia como explicar, mas sempre que o momento propício estava perto uma intuição infalível lhe avisava, e não era a voz da experiência. Ele sempre teve essa intuição desde antes de entrar para o ofício. Como dito, Gilmar se aproximava do carro esporte verde-musgo que o aguardava. O candidato ia à frente seguido por seus guarda-costas e pelo primo e assessor. Olho Cego cuspiu o cigarro e preparou a pistola que estava presa à cintura, uma Beretta 9mm com silenciador. Preparou a mira, os punhos firmes como um tripé, sua visão se ampliou nos olhos do alvo – depois do serviço que apagou aquele bacana com um tiro no olho passou a aperfeiçoar sua “assinatura”. Gilmar se despedia dos seus eleitores e, sem imaginar, se despedia deste mundo também. Olho Cego já não ouvia mais nada além do silêncio de sua concentração, o resto do mundo estava mudo. A mira seguia o olho direito de Gilmar. Quando este estava entrando no carro o gatilho foi, enfim, pressionado. O barulho da explosão abafado pelo silenciador se reduziu a um som insignificante de uma pedra atirada na água e, antes que pudesse ser dissipado por completo, o olho do alvo era varado pela bala. Gritos, gritos e mais gritos. Era hora de ir embora.

Alguém indicou de onde veio o tiro. Algumas pessoas olharam para a esquina, não havia ninguém lá, e nem nos outros quarteirões ao redor.

Jornal local, controlado pelo partido do candidato:

“Candidato Gilmar Furtado morto com tiro no olho. Um herói que nos deixou.”

Jornal da oposição:

“Gilmar Furtado poderia estar envolvido com madeireiros.”

Ao dar seu depoimento para os policiais, Gustavo Furtado, indignado, tentava apontar possíveis responsáveis. No bolso, o celular vibrou. Ele não atendeu.

segunda-feira, junho 21, 2010

Caçador Solitário - Conto

CAÇADOR SOLITÁRIO Por Rodrigo Moreno

A noite era um poço enigmático, escuro como a solidão que pairava acima das nuvens. As mesmas nuvens que cuspiam alguma coisa insignificante. O vento gelado corria sobre seu rosto magro de pele lívida, deformado e com traços bestiais, indo bater nas orelhas enormes, finas, mas pontudas em demasia, e o barulho resultante era gorgolejante, suave. Ele descia em alta velocidade com a cabeça, lisa como de um filhote de pássaro, perfurando o ar. Os membros estavam unidos ao corpo franzino semelhante ao de um menino que ainda nem sonha com a puberdade. Descia como desceria um foguete, ou um kamikaze sem avião mergulhando destemido para o fim. Mas para esse personagem o fim estava longe, já que a morte o renegara há muito tempo.
Luzes que pareciam as estrelas do céu que deixara para trás o recebiam, aos poucos sendo contornadas por formas de pequenos prédios, de postos de combustível, de iluminação pública e até de algumas lojas. Os prédios cresciam, a cidade cada vez mais próxima, e por um momento pareceu que se esbarraria, mas já abria as enormes asas de morcego, grudadas nos braços e no corpo. Parou de cair, agora planava suavemente, passando pelos prédios, agora pelos postes, por algumas árvores dormindo na escuridão, e, finalmente, desceu em um telhado. Seu corpo era leve, por isso não emitiu barulho algum, como se nunca estivesse ali pousado. Sentiu o calor da vida abaixo do telhado. Uma família saudável, feliz, que nem imaginava o que os esperava nessa noite. Recolheu as asas. Caminhou pelo telhado como um gato. O calor da vida parecia mais intenso agora. Será que estava abaixo do quarto das crianças? Quantas eram? Três ou quatro talvez, gordinhas e cheias de vida, e sangue. O par de petecas escuras que eram seus olhos assumiu um tom mais rubro. Presas de marfim cresceram no sorriso largo, animalesco. As mãos cadavéricas de veias arroxeadas terminavam em garras pontudas; dez espadas torcidas e pequenas, mas de longe afiadas.
Correu mais para frente, ainda ágil como um felino. Debruçou-se sobre a borda do telhado e, pendurado de cabeça para baixo, observou por dentro da janela; o vidro refletia alguns focos de luz noturnos, de postes a apartamentos. Apesar da escuridão, ele conseguia enxergar perfeitamente – os séculos vivendo nas trevas escondido do sol o presentearam com esta capacidade. Eram apenas duas crianças. Um casal de irmãos. Dormiam em camas separadas. Havia brinquedos espalhados ao redor, um enorme armário, e uma modesta televisão num canto próximo à porta.
Todos os órgãos de seu corpo há muito estavam atrofiados, tanto que até esquecera a sensação de um coração coberto de adrenalina, mas deveria ser algo parecido com essa sensação virtual, superficial e longe da humanidade, que agora sentia.
É claro que a janela estava bem trancada. Começou a se metamorfosear em sombra, odiava fazer isso, mas não tinha jeito. Doíam os músculos, a visão ficava um pouco abafada – pois olhos não tinha mais – e perdia o tato, tendo que se guiar apenas pela mente. Foram duros anos aprendendo isso sozinho, pois não conhecia outros de sua espécie. Sabia que existiam, mas todos eram solitários como ele. Após o processo de transformação, a janela fortemente trancada por pais cuidadosos já não era mais um obstáculo. Entrou no quarto se misturando às trevas do ambiente. Agora sentia seu corpo largo, enorme, envolvendo todas aquelas quatro paredes. Ele era tudo que fosse sombra ali, e estava por trás e por cima dos brinquedos, da TV, do armário, das camas onde as crianças dormiam com meios sorrisos de lábios cerrados, e também as sombras destas. E poderia ser muito mais; as sombras dos outros ambientes da casa, a sombra da cama de casal onde dormem os pais, as sombras deles, e qualquer outra ausência de luz que ali se encontrasse. Mas preferiu ficar apenas neste quarto, com as saudáveis crianças e suas vidas invejáveis que agora ele furtaria como um ladrão invisível, silencioso.
Após um breve momento a criatura retornou à sua forma original sugando algumas sombras do local e tornando-as rijas. Não demorou muito para sentir seu corpo de novo. Aproximou-se do menino. As presas cintilaram letais quando a criatura escancarou sua bocarra parecendo que ia engolir o mundo. A pele macia do pescoço do mortal era pouca coisa mais dura que o ar. O sangue de crianças assim era tão doce, tão magnífico, tão prazeroso, que chegava a ser alucinógeno. Imagens de um passado há muito esquecido brotavam no ar. Via-se ainda tão mortal quanto a caça que saboreava. Era um jovem curioso, envolvido com magia negra e forças ocultas. Um conde rico de coisas materiais, porém de espírito pobre, que adorava maltratar seus subordinados e sacrificá-los em rituais pagãos. Não à toa que o destino, revoltado, fez justiça tornando-o solitário afastando todos do seu convívio: familiares, supostos amigos, aliados... E nem a morte o quis quando era seu momento de partir. Aos poucos a ilusão foi se dissipando, a consciência voltando ao quarto onde ele sugava a vida do menino.
Sua intuição de predador o alertou sobre uma presença hostil se aproximando sorrateiramente. Os passos estavam próximos. Novamente se transformou em sombra passando pelo mesmo processo, dessa vez não tão dolorido, pois, estava fortalecido graças ao sangue do garoto. A porta do quarto rangeu ao abrir projetando no chão um facho de luz, aos poucos se transformando em um triângulo que se alargava ainda mais até aparecer uma sombra humana. Logo acima, na entrada da porta, uma mulher dos seus trinta e poucos anos de roupão de dormir, a cara engelhada de sono e o cabelo despenteado, observava suas crianças dormindo tranquilamente. Pareceu se contentar com a visão, mas para ter certeza que estava tudo bem, acendeu o interruptor. A luz era muito forte, e apesar de artificial – por isso inócua – causava um grande desconforto para o habitante das trevas. Ele emitiu um leve grito, quase inaudível, o grito que o ar faria se tivesse voz, ou o ronco do silêncio que dormia tranquilo com seus filhos, ou até o único som que se propagaria no vácuo, se ele assim o permitisse, mas foi interpretado como um distante barulho vindo de longe, tão longe, que pareceu causado pela imaginação, e rapidamente foi esquecido.
A criatura de sombras agora se sentia despedaçada, um braço na sombra atrás da porta, o outro atrás do armário, seu busto bem abaixo da cama do menino, a cabeça e outras partes do corpo divididas em penumbras pelo quarto. Não sabia quanto tempo a maldita mortal ficaria por ali, mas não aguentava mais o excesso de luz cegando sua visão. Teve que recuar. Devagar como uma lesma foi andando para trás, para além da janela de volta ao seu refúgio no telhado. Ficaria lá até a luz do quarto se apagar e assim poder retornar para terminar a refeição. O menino já deveria estar praticamente morto, mas ainda tinha sangue fresco em suas veias, e esse alimento jamais deve ser desperdiçado. Porém, o que não notara até então é que o crepúsculo já descia do céu gradativamente. Apavorado, abriu as asas e voou num salto tão súbito que algumas telhas abaixo de seus pés, que pareciam patas peludas, moveram-se violentamente. O barulho do bater de asas foi o primeiro som daquela madrugada. A mãe, com o cenho franzido, se aproximou da janela e viu um enorme pássaro negro desaparecendo no horizonte.
Devagar saiu do quarto fechando a porta com bastante cautela para preservar as poucas horas de sono que ainda restava para suas crianças.

A claridade do sol invadiu o quarto pela janela de vidro. A menina se remexeu na cama, apertou as pálpebras firmemente, e se relutou em abandonar o sonho que esqueceria ao acordar. No canto mais escuro do quarto, onde ficava a outra cama, o menino, imóvel, abriu os olhos. Em seu pescoço duas coceirinhas insignificantes – eram as feridas cicatrizadas, invisíveis ao olho nu. Via a irmã que agora se virava encolhida em sua direção. Ela respirava profundamente, e exalava um calor vital, saboroso, e em seu pescoço o sangue bombeava, e bombeava...

sexta-feira, março 12, 2010

OLHOS DE UM ARTISTA - CONTO

OLHOS DE UM ARTISTA

Quando Luciano abriu os olhos pela primeira vez depois de tantos anos, sentiu lágrimas quentes correrem pelo rosto. A visão não poderia ser a melhor. Seus pais e seu irmão mais novo. Ao seu lado encontrava-se uma enfermeira e o médico. Mas seus olhos se focaram na família. Não conseguia reconhecê-los direito; estavam mais velhos. Seu pai já tinha cabelos brancos, sua mãe apresentava algumas rugas e seu irmão, que era um garotinho magricelo, agora era um homem feito: alto e com barba. Era a primeira vez que os via depois de mais de dez anos na escuridão. Desde aquele dia quando a frigideira caiu derramando óleo quente sobre seus olhos as únicas coisas que via eram imagens criadas pela sua imaginação. Mas com o tempo isso se tornou difícil, pois as cores já não eram mais que lembranças vagas e era comum confundir vermelho com laranja ou verde com azul.
Os pais lacrimejavam e o irmão, sorrindo com os lábios cruzados, fez um cafuné em sua cabeça e disse:
- Bem vindo de volta ao mundo das cores, mano.

A família planejou um jantar social para comemorar. Convidaram os amigos mais íntimos, todos os familiares e o médico que cuidou dele, o Dr. Ernesto. Luciano recebia a todos com um sorriso cheio de dentes. Aceitava ser fotografado com os amigos e primos, mas evitava o flash, pois seus olhos ainda estavam um pouco sensíveis.
Luciano não conseguia conter as lágrimas; ninguém poderia dizer ao certo se eram lágrimas de felicidade por voltar a enxergar ou de tristeza pelas coisas bonitas que foi privado de ver durante todos esses anos. Luciano tinha tantas coisas para conversar que nem se preocupou em comer. Estava ansioso para voltar a ver um filme e ler um livro. No fim da festa o último a sair foi o Dr. Ernesto. Estava ébrio e talvez por isso sorria como um bobo. Luciano nunca tinha visto alguém alcoolizado, mas imaginava-os sorrindo daquele jeito. Seus olhos brilhavam atrás das lentes quadrangulares do óculos. Por um momento o efeito do álcool parecia ter se esvaído. O médico colocou a mão esquerda sobre o ombro do rapaz e falando baixo, para que apenas Luciano pudesse ouvir, disse:
- Cuide bem dessas novas córneas, rapaz – suas bochechas caídas como as de um bulldog balançavam e Luciano sentia o cheiro de álcool no ar – elas pertenceram a alguém importante.
Luciano não deu atenção aquilo. Apenas sorriu e o encaminhou até um táxi.

Seu primeiro dia após a operação na repartição pública onde trabalha foi como um dia de celebridade. Todos o cumprimentaram e eram receptivos. Ele não gostou muito daquilo; uma das coisas que mais desejava era ser tratado como igual, e toda vez que era recebido com uma atenção exagerada sentia-se de volta a cegueira, quando ainda era um deficiente que precisava de cuidados especiais. Mas sabia que não faziam aquilo por mal, por isso sempre retribuía com aquele sorriso amarelo que andava praticando todos os dias em frente ao espelho.
A única coisa que ainda incomodava Luciano era uma luz que via ao redor de todas as pessoas como se seus corpos fossem feitos de algum metal brilhoso. De longe todos pareciam seres luminosos. Nada que pudesse atrapalhar sua visão, mas ainda assim era algo estranho.

- Sua visão está perfeita – afirmou Dr. Ernesto com convicção. Uma aura de luz dava-lhe uma aparência divina e Luciano não sabia se olhava para ele ou para a aura.
- Mas será que não é algum efeito colateral causado pelo colírio que o senhor me passou? – perguntou Luciano.
- Não, Luciano – retrucou o médico unindo as mãos inconscientemente sobre a mesa como se sentisse frio – eu lhe asseguro de que sua vista está em perfeito estado. Talvez você esteja apenas vendo coisas, nesse caso o problema está em sua cabeça, por isso sugiro que procure um psiquiatra.

Luciano não foi a nenhum psiquiatra, tampouco comentou isso com mais alguém. Imaginava que pudesse ser sua mente se readaptando a realidade. Foi então que viu um deles pela primeira vez.
Quando estava na parada de ônibus viu um rapaz, talvez da idade de seu irmão, de mãos dadas com a namorada. Ele era alto, cabeludo e usava uma camisa colorida e uma bermuda – parecia um palhaço e Luciano tentou se controlar pra não rir. Ela era menor, bem pequena e usava uma saia enorme e engraçada que uns tempos depois descobriu tratar-se de uma saia indiana. Ambos brilhavam como todas as outras pessoas, no entanto, Luciano percebeu uma outra luz, dessa vez um ponto luminoso de cor violeta, flutuando ao redor do casal. A luz dançava no ar emitindo um barulho agudo que apenas alguém com uma audição muito treinada poderia ouvir, uma audição como a de um cego, ou ex-cego. Luciano não sentiu medo, nem sequer fez algum gesto brusco para avisar o casal de que estavam sendo seguidos por uma luz violeta que parecia viva, até porque era notável que apenas seus olhos poderiam ver esse estranho fenômeno. O casal subiu em um ônibus e Luciano nunca mais os encontrou, nem sequer descobriu seus nomes ou onde moravam, ou se ficaram juntos pelo resto da vida, mas aquela cena se repetiria perpetuamente em sua cabeça.
Outros pontos luminosos brilhavam nas ruas. Eram de várias cores. Luciano achou que muitos anos na escuridão o tivessem deixado louco. Mas só começou a temer quando um desses seres se aproximou; era de cor violeta como o que seguia o casal. Luciano correu e entrou em um shopping center. Retomou o fôlego, mas ao olhar ao redor, vários focos de luz pairavam acima das cabeças das pessoas. Ele se afastou para perto da parede. O ponto luminoso de cor violeta que o seguia se aproximou e o observou por alguns minutos, em seguida foi embora.
Luciano criou forças e correu, empurrando algumas pessoas que responderam com insultos. Entretanto, nenhuma daquelas criaturas o seguiu, mas isso não foi um alívio, pois elas o observavam como se tivessem algo planejado.
No ônibus, ele mal sentia seu corpo trêmulo. Havia poucos passageiros e alguns daqueles focos luminosos voando. Eram cinco de cores diferentes. Elas voavam acima do cobrador, do motorista e das outras três pessoas.
Finalmente chegou em casa. Pensou em contar o que aconteceu, mas imaginou que ninguém acreditaria. Trancou-se no quarto e não tinha pretensão de sair de lá durante o resto do dia.
Ouviu duas batidas na porta.
- Filho, você está bem? – perguntou sua mãe com uma voz demasiadamente preocupada que às vezes lhe aborrecia.
- Estou bem! – respondeu com grosseria.
A porta se abriu bruscamente.
- Fale direito comigo – exigiu a mãe.
Luciano viu um foco de luz roxo voando perto do ombro dela.
- Está me ouvindo? – continuou ela com mais rispidez – eu sou sua mãe e exijo respeito!
O corpo dela brilhava como as outras pessoas, entretanto esse brilho foi desvanecendo ou adquirindo outra tonalidade, mais fraca e translúcida. Enquanto isso o globo de luz continuava dançando sobre seu ombro; parecia mais vivo e brilhante. A pele de sua mãe parecia lívida, com olheiras no rosto.
- A senhora está bem? – perguntou Luciano subitamente.
- Claro que sim! – respondeu ela ainda com rispidez. Em seguida bateu a porta e foi embora.

O Dr. Ernesto ainda estava de pijama quando o telefone tocou. Sua esposa resmungou na cama – ainda não se acostumara com as emergências do marido. O despertador na prateleira marcava cinco e trinta. O telefone tocou novamente como uma criança chorando cada vez mais alto para chamar a atenção.
- Alô... – disse o médico numa voz fraca.
- Alô, Dr. Ernesto. Aqui é Luciano, um dos seus pacientes – a voz parecia distante e o médico balançava de sono.
- Oi, Luciano... – continuou o médico ainda sem forças na dicção – como está indo com as novas córneas?
- É sobre isso que quero falar, doutor... Acho que tem alguma coisa errada. Aquelas alucinações estão ficando cada vez mais freqüentes!
- Já procurou um psiquiatra?
- Eu sei que não sou louco, o problema não está na minha mente.
- Sim, claro... – disse o médico – mas eu posso lhe garantir que sua visão está perfeita.
- Eu não duvido disso. Mas eu preciso saber de uma coisa.
- Diga?
- Quem era o dono original dessas córneas?
- Por que você quer saber? Isso não tem nada a ver com...
- Estou vendo uns globos de luz voando por aí... parecem que estão vivos!
O médico ficou em silêncio por um momento.
- Me encontre as oito da manhã no meu consultório. Agora devo voltar para cama, senão não terei disposição para podermos conversar.

Sete e trinta Luciano já se encontrava na porta do consultório. O médico chegou em seguida. Ambos se cumprimentaram formalmente e entraram.
- O que você entende de artes plásticas? – começou o médico.
- Eu confesso que nunca apreciei um quadro, mesmo antes de ficar cego.
- Muitos deficientes visuais acabam se interessando pelas artes que não podem ver. Já tive muitos pacientes que se tornaram artistas plásticos.
- Mas eu realmente nunca me interessei muito por isso.
- Pelo menos já ouviu falar de Vinícius Sabino? – indagou o médico debruçando-se mais sobre a mesa. Luciano se viu refletido nas lentes quadrangulares do óculos dele.
- Sim, meus pais falam sobre ele às vezes.
- Vinícius Sabino foi um grande artista plástico, mas no auge de sua carreira teve uma parada cardíaca e morreu. É uma pena... Sabino estava produzindo seus melhores quadros...
- Ele era o dono das córneas?
- Sim.
- Você sabe se ele via alucinações?
O médico respirou fundo, endireitou-se na mesa sutilmente, ficou ereto e até parecia mais magro naquela posição. Sem mudar a seriedade da voz disse:
- Tive a oportunidade de conhecer sua esposa, a senhora Diane Sabino. Ela me disse que alguns dias antes de morrer, Vinícius lhe revelou algo extraordinário. Segundo o que ela me contou, ele acreditava que existiam seres de luz que apenas ele podia ver e que se alimentavam da energia emocional das pessoas. Eram esses seres quem lhe davam a inspiração para produzir seus quadros.
Luciano arregalou os olhos. Quase aos gritos perguntou:
- Por que não me disse isso antes?
O médico sem perder a paciência respondeu.
- Achei que seria melhor você procurar ajuda profissional primeiro. Eu ainda acredito que se Vinícius via realmente esses seres de luz, provavelmente não estava com a saúde mental muito boa...
- Mas e se for verdade?
- Escute o meu conselho, rapaz – disse o médico – procure um psiquiatra.

Luciano saiu do consultório. Antes que fechasse a porta viu um globo laranja voando acima da cabeça do Dr. Ernesto. Assim como sua mãe, o médico parecia empalidecer aos poucos. Nas ruas outras pessoas eram perseguidas por outros globos de luz de diversas cores. Luciano chegou em casa e perguntou por seu irmão. Ele havia acabado de chegar, foi o que disse seu pai sentado no sofá assistindo os noticiários. Foi ao quarto do irmão. Lorenzo o recebeu com um sorriso sincero e feliz como se ele fosse um amigo que não via há muitos anos.
- Diga, mano? – perguntou Lorenzo.
- Preciso que você pesquise algo para mim na Internet.
- Claro! Entra aí.

Passaram algumas horas pesquisando sobre o trabalho de Vinícius Sabino. Lorenzo parecia curioso com o súbito interesse do irmão por artes, mas não fez perguntas. Lorenzo sabia um pouco sobre o trabalho desse artista. A mãe deles o admirava. O pai nem tanto. Os quadros de Sabino são abstratos e cheios de cores. Ás vezes, formas conhecidas são vistas, formas como pessoas ou animais que se misturam com outras formas sem sentido e desaparecem num caos psicodélico. Lorenzo não era muito interessado em artes, principalmente nas mais abstratas como as de Sabino, por isso só fazia criticar aquele monte de rabisco que qualquer criança de três anos faria melhor. No meio da pesquisa eles descobriram que até o próximo domingo os quadros do artista plástico estariam em exposição no centro de convenções da cidade.
No dia seguinte, Luciano foi um dos primeiros a chegar à exposição, mesmo assim não escapou de uma fila grande que crescia a cada momento. Vários tipos de pessoas de diversas idades esperavam no sol das dez as portas se abrirem. Várias luzes coloridas brilhavam acima dos visitantes. Mais alguns minutos de espera e a fila começou a andar. Um guia com não mais que vinte e cinco anos e que provavelmente era estudante de Artes surgiu da entrada do centro de convenções anunciando que a exposição estava aberta. Todos entraram e ele começou a explicação. Luciano se perdia constantemente no assunto. Estava atento as pessoas e os globos de luz que as seguiam. Sua atenção só retornou ao guia quando viu que ele parecia um cadáver de tão pálido. Olhou ao redor e todos estavam como ele. Pareciam um bando de cadáveres que não sabiam que estavam mortos. As luzes dançavam alegremente como se estivessem em uma festa, ou jantar. Todas brilhavam com mais intensidade.
Elas pareciam se alimentar da aura das pessoas tornando-as mais pálidas. Algumas pessoas começaram a queixar-se de dores de cabeça e sono. Mas não houve desmaios ou mortes súbitas. As luzes sabiam o momento de parar para não matar seu rebanho.
Após sair do centro de convenções Luciano se dirigiu à parada, onde ficaria sentado no banco deixando seus ônibus passarem, ainda estava sem ânimo para ir para casa. Sabia que não estava louco. Aquelas coisas eram realmente reais e não havia nada que ele pudesse fazer.
Sentiu um calor nos dedos e uma vontade de pegar em uma caneta. Sorte que tinha uma no bolso. Agora precisava de um papel. Encontrou uma folha de jornal perto do banco. Rabiscou alguma coisa. Não uma forma definida. Apenas rabiscos que surgiam em sua mente. Sorriu e em seguida jogou o papel fora.
Em casa pegou algumas canetas, lápis coloridos e folhas de papel da impressora do seu irmão. Trancou-se no quarto e começou desenhar, ou rabiscar. Vez por outra desenhava um homem ou carro e fundia-o a outra forma para dar outro sentido. Estava gostando daquele jogo de cores. Desenhou coisas que sonhara quando ainda era cego, interpretações suas do mundo que só conhecia pelo tato e pela audição, desenhou idéias estranhas que surgiam no ar, desenhou coisas que existiam e outras que nunca existiriam, e tudo que sua imaginação ousasse. Depois de terminar, viu que todos os seus desenhos não eram apenas um monte rabiscos, eram obras de arte!
Mostrou-os para a mãe que elogiou bastante. O pai também gostou muito e até Lorenzo não deixou de dar seus parabéns ao irmão talentoso. No entanto, o que eles não sabiam é que Luciano ainda iria muito longe.
Em alguns meses Luciano já era um reconhecido artista plástico. Sua família estava orgulhosa. Todos diziam que seu estilo lembrava muito o de Vinícius Sabino. Mas ele sempre relutava dizendo que Sabino não era nada além de um “colega de classe”, pois ambos bebiam da mesma fonte de inspiração. Essa fonte ele nunca revelou.

Um zumbido seguido de uma luz roxa tirou a atenção de Luciano do último quadro que pintava. Luciano viu um globo brilhante entrando no estúdio. À medida que o globo se aproximava linhas iam se formando no centro. Luciano viu um par de buracos completamente negros, um ao lado do outro como um par de olhos. Uma linha abaixo se abriu horizontalmente como se o globo fosse se partir ao meio. Dezenas de pequenos dentes pontiagudos brilharam como diamantes dentro de uma caverna. A boca se mexeu emitindo um barulho como de papel sendo amassado. Parecia pronunciar algumas palavras. Luciano permaneceu quieto. A criatura repetiu.
- Você está fazendo um bom trabalho. Eu e meus irmãos estamos orgulhosos. Seus quadros estão até melhores que os do nosso antigo servo. Continue assim e sempre será famoso e cada vez mais rico.
- Eu só queria voltar para minha vida simples... – retrucou Luciano tristemente.
A luz brilhou mais intensa dessa vez.
- Mas não pode! – gritou – Precisamos que produza cada vez mais quadros! Os fãs precisam de coisas novas para sentir emoções novas! – com uma voz mais amena, porém ameaçadora, continuou – Talvez você não tenha entendido direito por isso vou explicar mais uma vez. Essas emoções que apenas seus quadros produzem é o nosso principal alimento, pois é ele que nos dá forças para sair pelas ruas nos alimentando das emoções de outras pessoas. Por isso seu trabalho é necessário para nossa sobrevivência. Espero que entenda isso de uma vez para não causar problemas, e aceite a vida boa que estamos lhe dando; é o melhor que você tem a fazer. Mas se decidir ir embora ou contar algo para alguém nós o mataremos e colocaremos outro em seu lugar... Quem sabe seu irmão? Ele poderia sofrer algum acidente e ficar cego, mas não por muito tempo, pois herdaria as córneas do irmão morto...
Luciano empalideceu e gritou:
- Deixa meu irmão em paz! Não se meta com a minha família!
A criatura fez um barulho semelhante a um jornal sendo rasgado. Pelos movimentos da boca parecia ser uma risada.
- Volte ao trabalho... – ordenou a criatura – Não falaremos mais nisso.
Depois foi embora e deixou Luciano trabalhar em mais uma obra-prima que lhe daria mais fama e dinheiro, mas que em troca o tornaria escravo desses vampiros de luz para sempre.