terça-feira, setembro 22, 2009

A MOÇA DE BRANCO - CONTO

A MOÇA DE BRANCO

Todas as noites quando eu saía do trabalho lá estava ela na beira da esquina a esperar minha carona. Ela sempre com aquele vestido branco, bem fora de moda, mas isso até ressaltava sua beleza. Mesmo que seja lívida como um cadáver, observada de perto, é de uma lividez viva, limpa. Um cadáver não tem a pele assim. Ela acenou com a mão direita de maneira elegante, aliás, todos os seus movimentos são desse jeito, de uma elegância romanesca, clássica, que não existe mais. Abri a porta e a deixei entrar, ela sorriu e não disse mais nada a viagem toda. Novamente tentei puxar algum assunto. Mas ela permaneceu em silêncio, apenas sorrindo e balança a cabeça concordando com tudo que eu dizia. Dava carona a ela todas as noites e por mais estranho que possa parecer não a conheço, não sei de onde veio, o que faz da vida e nem ao menos sei seu nome. A única coisa que sei a seu respeito é que ela deve morar perto do cemitério, pois é sempre lá que ela pedia com gestos para eu deixá-la. Cada vez que ela partia eu sentia a curiosidade ferver em minha ânsia criando fantasias deturpadas de hipóteses improváveis. Era uma louca? Morava com pessoas estranhas que não a deixavam se relacionar com mais ninguém? Era uma foragida da policia? Não gostava nem de pensar nessas possibilidades. Por isso precisava saber mais a respeito desta moça. E foi o que fiz. Um dia, após estacionar o carro atrás do cemitério e a vê-la partir dobrando a esquina a segui furtivamente sendo ofuscado pelas sombras das árvores altas, sombras que nem as luzes da iluminação pública e dos prédios ao redor se atreviam a penetrar. Ela caminhava devagar ao lado do cemitério e da distância que nos afastava não dava para ouvir seus passos, era como se flutuasse. A vi dobrar na esquina e entrar no cemitério. O portão estava aberto e também entrei. Mas a perdi de vista por algum tempo. Olhei por cima de todas as sepulturas ao meu redor e nada da estranha moça. Até que vi uma luz mórbida vinda de longe. Fui em direção a ela. Já não me importava em ser furtivo, por isso andei normalmente até tropeçar em algo que ao olhar com mais atenção notei tratar-se de uma mão já em bastante estado de decomposição. Ao meu lado vi uma tumba aberta com bastante areia pelos lados, como se alguém tivesse cavado. Mas não vi pá alguma. Aquilo me gelou os ossos e pensei em sair correndo antes que o maníaco aparecesse para dar fim a única testemunha de seus atos ilícitos. Mas não poderia ir embora sem antes saber onde estava a moça e o que era aquela luz estranha. Andei em direção a luz até chegar a uma área com bastante mato onde as sepulturas mais antigas permanecem como uma lembrança esquecida. Lá estava ela de cócoras em frente a uma grande sepultura com uma foto. E a pessoa na foto era ela! Já sentia minhas pernas tremerem, mas a curiosidade sempre falou mais alto pra mim. Aproximei-me da moça. Ela comia algo. Parecia um macaco agachado comendo frutos. Mas pelo liquido viscoso que escorria por seus braços só poderia ser uma coisa... Ela, percebendo minha presença olhou para trás, seus olhos eram pontos pretos ou haviam simplesmente afundando na escuridão. Sua boca suja de sangue exibia dentes pontudos como os de uma carranca. Vi um pedaço de carne que juro ser a ponta de um dedo cair de sua língua, agora grande e fina como de uma víbora. Em suas mãos encontrava-se o resto de um braço que ela havia devorado. Vi um corpo logo atrás que deveria ser o do defunto que estava enterrado naquela tumba violada. Ela rugiu para mim, eu me afastei e fiz o sinal da cruz. Ela sumiu no ar gritando, um som gutural, bestial, nunca antes ouvido por qualquer outro mortal e que apenas um louco que já caminhou nas profundezas do inferno em seus delírios esquizofrênicos poderia descrever com precisão. Um grito de ódio ou um pedido de misericórdia que ecoará para sempre em meus pesadelos.

sábado, setembro 05, 2009

O Navio Pirata-Conto

Para comemorar o lançamento da antologia Sinistro! aí vai um mini-conto, sem muitas pretensões, mas divertido de ler, ao menos pra matar o tempo.
O NAVIO PIRATA

O arraial chegou na praça da igreja com muita festa e crianças ansiosas para subir nos brinquedos coloridos e cheios de luzes que giravam quando estavam ligados. O arraial é a atração mais esperada pelas crianças. Os pais enlouquecem correndo atrás dos pequenos. Um deles entrou no Navio Pirata que estava prestes a ser ligado. Ele foi rápido, nem o funcionário responsável pelo brinquedo viu, entrou no navio de cores vivas e se escondeu atrás de um casal de namorados. Sua mãe gritava chamando seu nome, “André”, olhava por todos os lados, estava começando a ficar nervosa. O brinquedo ligou. Primeiro ia e voltava devagar, até que começou a acelerar. “Uhul!”, gritavam as pessoas que estavam dentro. O pequeno André permaneceu escondido. “André!”, gritou mais alto a mãe já desesperada. “Onde você se meteu!”. Na proa do Navio o esqueleto de um marujo pendurado como numa cruz sorria de forma diabólica, seus olhos brilharam num vermelho escuro e o brinquedo alcançou a velocidade máxima. O navio começou a tremer, faíscas saiam de várias partes. Os gritos de diversão se transformaram em gritos de horror. O funcionário tentou parar a máquina, mas era tarde, ela já soltara muitos parafusos. O navio fez um movimento brusco para frente destruindo um carrinho de pipoca. Todos ao redor correram gritando. O navio andou mais uns vinte metros até bater no Trem Fantasma. Em poucos minutos os bombeiros chegaram junto com a polícia. Felizmente ninguém se feriu gravemente. Mas antes que todos pudessem se recuperar do susto, um dos bombeiros encontrou o corpo de um menino, já em bastante estado de decomposição, escondido bem atrás do último banco, quase impossível de se ver a olho nu. Segundo a policia tratava-se de André, um garoto que havia desaparecido no último arraial e nunca foi encontrado. Dizem que ele sofria de problemas cardíacos e era proibido de entrar em um brinquedo perigoso como aquele. E a família do garoto? Indagaram alguns. A mãe não agüentou a ausência do filho e se matou alguns meses após o desaparecimento do menor. Ela ingeriu veneno para rato. O corpo do menino foi levado para ter um enterro digno e a mãe já se encontrava calma, sorrindo. Com a brisa da noite ela se foi, desaparecendo no ar.

Sinistro! Contos de Terror


Depois de muito esforço e dedicação (e muitos nãos subentendidos) estou conseguindo tocar pra frente minha carreira de escritor. Em breve a Editora Multifoco (http://www.editoramultifoco.com.br/) lançará meu livro Fuga da Sanidade de contos fantasticos. E para começar um conto meu (que nao está no meu livro) foi publicado na antologia Sinistro! de contos de terror da mesma editora. São 22 histórias assustadoras pra deixar as pessoas mais sensiveis sem dormir.

O livro é uma boa dica pra quem gosta do gênero.
Se quiser adquirir um entrem em contato comigo pelo email rodrigocarvalho84@hotmail.com , ou me precure pessoalmente. O preço é de apenas R$ 25,00. De graça só o autógrafo! rsrs


domingo, maio 10, 2009

MÁSCARAS DIGITAIS OU A TELENOVELA SINTÉTICA - Conto

MÁSCARAS DIGITAIS OU A TELENOVELA SINTÉTICA Por R. Moreno®

- Mara, meu amor – disse o galã – Não é nada que você está pensando. Eu estava apenas...
- Não diga mais nada! – interrompeu Mara virando o rosto e escondendo-se atrás dos cabelos ruivos – não quero saber o que você faz da vida, Markus! Não estamos mais juntos. Se você quer ficar com a minha irmã por mim tudo bem...
- Mas Mara... – disse ele com aquela voz que deixava milhares de mulheres se derretendo – você é tudo pra mim...
Mara estava andando de um lado para o outro na sala luxuosa. Parecia impaciente, sem saber o que dizer.
- Eu sei – balbuciou ela – mas você sabe que estou casada agora e não posso...
- Fala errada – interrompeu o galã com uma voz sintética de robô.
- Droga – disse Mara – eu esqueci – olhou para o galã que permanecia imóvel perto do sofá – Vamos tentar de novo. E nem ouse dizer a minha fala. Eu sei que posso me lembrar. É só esperar uns segundos. Peraí...
Ainda imóvel com o olhar parado no vazio, sem piscar, o galã disse:
- Mara – a voz era bem familiar dessa vez, uma voz grossa sem toda aquela sensualidade – acho que já chega por hoje.
Todo o cenário começou a se desfazer numa névoa de dados. Mara tirou o capacete de realidade virtual e olhou séria para o rosto de Aluízio, seu marido.
- Eu estava indo bem... – resmungou ela.
- Eu sei disso – replicou ele – mas você já está há mais de três horas nesse negócio. Nem almoçou!
Ela olhou para o marido. Seu rosto era muito quadrado, ele era menor que ela alguns centímetros e seus olhos eram pretos. Bem diferente do galã Markus de olhos castanho-claros que ela adorava.
- Estou sem fome... – disse ela numa voz rasgada.
Aluízio a abraçou.
- Sei que você adora essas telenovelas interativas, mas tem que parar de querer viver outra vida.
Mara franziu o cenho e olhou para ele.
- Mas não é isso que todo mundo faz? Inclusive nós fizemos!
- Mas é diferente. Isso não é realidade virtual.
- Depende do ponto de vista.
- Não quero discutir isso – Aluizio soltou os braços da cintura dela e vestiu a camisa social branca que ele sempre usa para o trabalho – Tenho que voltar para a clínica. Está cheio de gente querendo mudar de identidade esses tempos. Não estamos dando conta de todos.
- Deve ser legal trabalhar num laboratório de troca de identidade. Saber o segredo das pessoas...
- Não é bem assim. Quando alguém muda de identidade temos que apagar todas as informações da vida anterior dessa pessoa e devemos apagar nossas memórias sobre isso também.
- Não é perigoso? Quer dizer, algum bandido foragido pode mudar de identidade pra escapar da polícia.
Aluizio quis rir da ingenuidade da esposa. Em pleno ano 2115 e ela ainda pensava como as pessoas de três gerações atrás.
- Assim você me envergonha – brincou ele – o que muda é apenas a personalidade. O rosto de procurado continua o mesmo. Se bem que na prática a policia costuma fazer vista grossa. Afinal, se o bandido mudar de personalidade vai se tornar um cidadão direito e não vai mais dar trabalho pra ninguém. Isso poupa espaço nos presídios.
- Mas é injusto! – protestou Mara balançando o dedo indicador direito para cima – Ele comete os crimes e tem que pagar por eles.
- Você está me envergonhado de novo, querida – retrucou Aluizio dando um nó na gravata em frente ao espelho – Todos, inclusive você, sabem que essa é a melhor forma de re-socialização já criada. Só continua bandido quem quer.
E era verdade. Apesar de Mara e de outras centenas de pessoas não verem isso com bons olhos todos tinham que aceitar. O governo investia uma verba altíssima para apoiar os criminosos que se entregassem e quisessem mudar de identidade para se tornar pessoas de bem. O governo concedia um emprego razoável e emprestava uma casa padronizada onde o ex-criminoso poderia ficar um tempo até encontrar um lugar para morar por conta própria. Porém, logo quando a operação TI (Troca de Identidade) foi criada havia muitos problemas. As pessoas acordavam sem saber quem eram e completamente perdidas no mundo. Por isso quando o ex-criminoso acordava confuso e sem ninguém acabava voltando para o mundo do crime. Mas com o avanço da tecnologia esse problema já não existia mais. Hoje, após a operação o paciente ainda passa uns meses tento uma vaga idéia de quem ele era e o que pretendia com essa nova identidade. É o tempo necessário para ele organizar sua vida.
Quando Aluizio saiu para o trabalho Mara ficou refletindo sobre essa última discussão deles. Ela ainda sabia muito pouco em relação a TI. Tudo que ela sabia era que era uma operação complicada que envolvia chips no cérebro, mas não conseguia dar uma explicação muito complexa porque nunca fora muito de ler revistas cientificas. Aliás, tecnologia e ciência eram assuntos que lhe davam sono. Na verdade muitas coisas lhe davam sono. Tudo que ela gostava era de ficar em casa assistindo suas telenovelas interativas e participando como a personagem principal. Todavia, sabia que Aluizio tinha razão quando dizia que ela andava viciada nisso. Esquecia de tudo que não fossem essas novelas. Suas amigas, se é que ainda as tinha, não a visitavam mais, pois ela as evitava. Não queria mais saber de ler revistas de moda e nem seus romances eletrônicos que ela adorava, mas que agora permaneciam engavetados na memória do computador central da casa. Além disso, Mara já não se alimentava direito e havia emagrecido uns dez quilos.
Decidiu comer alguma coisa, comida rápida de preferência.
- Margarete – chamou ela. Um holograma de uma simpática dona de casa apareceu na sua frente.
- Diga senhora – perguntou o holograma. Sua voz era doce e até razoavelmente humana.
- Prepare um sanduíche de bife sintético com creme de queixo e suco de laranja-maçã.
- Mas senhora... – disse o holograma numa coloração azul-claro que significava preocupação – Isso não é almoço. A senhora precisa se alimentar direito.
Com uma voz tranqüila Mara pediu:
- Não me questione, Margarete – depois de um momento de silêncio como se refletisse sobre algo continuou – por favor, faço o que eu peço.
O holograma se tornou verde que significa “ordem pronta para ser cumprida”.
- Tudo bem, senhora – a simpática dona de casa desapareceu. A cozinha inteligente faria tudo automaticamente.
Mara queria pensar em outra coisa, mas estava muito ansiosa para saber o final da novela. As telenovelas interativas são um jogo onde as pessoas podem interagir e suas ações mudarão o rumo da história. No entanto, era necessário ensaiar algumas falas pré-definidas para haver coerência na trama e evitar contradições. Mara decidiu ensaiar suas falas.
- Eu sei – disse com convicção – mas estou casada agora e... – as palavras sumiram de novo – E... sei que ele vai me fazer muito mais feliz que qualquer outro homem, inclusive você, Markus – sorriu triunfante – É isso! Agora falta só ensaiar mais – seus olhos voaram pela sala e pousaram no capacete de realidade virtual em cima da mesa de jantar.
Não, só depois do almoço, pensou ela, inquieta. Ah, que se dane!
Levantou-se do sofá rapidamente e pegou o capacete. Colocou-o e viu a tela virtual branca. Com o pensamento ela ligou o aparelho e viu a tela branca se tornar maior e maior, até preencher todo o espaço que sua visão poderia alcançar.
A música de abertura da novela tocou. O título era “As Faces do Amor”. O cenário da sala luxuosa surgiu. Mara estava usando um belo vestido social. A sua frente se encontrava Markus, o galã, vestido num terno fino, sorrindo o sorriso mais bonito que ela já viu na vida. Aquele sorriso falou:
- Você é tudo pra mim...
- Eu sei – disse ela, convicta – mas estou casada agora e sei que ele me vai me fazer muito mais feliz que qualquer outro homem, inclusive você, Markus!
O belo sorriso se alargou mais assumindo uma aparência diabólica.
- Você acha que conhece seu marido? – perguntou o galã.
Mara não se lembrava daquela fala. Sobressaltada perguntou:
- O que você quer dizer?
- Se quer saber a verdade, venha comigo – Markus estendeu a mão a ela – Todos no jantar estão nós aguardando. Você precisa saber a verdade.
Ela pegou a mão dele.
Eles saíram da sala e foram até o salão de festas onde várias pessoas bem vestidas bebiam uísque e comiam salgadinhos exóticos oferecidos pelos garçons. Mara reconheceu o rosto de alguns. Artistas famosos que emprestavam suas fisionomias para serem digitalizadas e fazerem parte da fantasia de milhares de pessoas em todo o mundo. Até suas interpretações eram transformadas em dados para seus respectivos personagens tornarem esse mundo de sonhos ainda mais real. Todo aquele espetáculo caro e brilhando como um cordão de pérolas era preenchido por uma bossa-nova instrumental e por conversas e risadas civilizadas, tudo com muita classe e etiqueta.
- Markus, onde você esteve? – perguntou uma voz feminina. Era a irmã de Mara na novela. Uma moça muito bonita e jovem, mas já nutrindo um sentimento de ciúmes pela irmã mais velha.
Ela não cumprimentou Mara.
- Landa... – sorriu ele – que bom ver você.
- O que vocês estavam fazendo? – perguntou a garota dirigindo um olhar hostil e desconfiado para Mara.
- Estávamos apenas conversando – disse Mara, séria.
- Será que você não se contenta com seu marido? – gritou a garota.
- Landa, se acalme – pediu Markus.
- Não! – berrou a garota. Todos olharam surpreendidos. Landa fitou o rosto lívido de Mara – Você sempre foi a favorita de todos. Dos nossos pais, dos nossos parentes e até... – ela balbuciou um pouco – e até de Markus. Eu sei que ele ainda gosta de você – suas lágrimas eram visíveis – Mas isso não é justo! Temos que acabar com essa farsa. Esta na hora de saber toda a verdade sobre quem realmente você é!
- Já chega, Landa! – gritou Markus.
A garota se acalmou, mas ainda ofegava muito. Markus olhou ao redor para todos os convidados. Parecia envergonhado por ter perdido a paciência. Em seguida olhou para Mara.
- Você saberá de tudo que precisa saber – disse ele numa voz calma – mas não dessa maneira. Não por essa sua irmã invejosa. E sim, por eles.
Um casal com cerca de cinqüenta anos se aproximou.
- Quem são eles? – perguntou Mara um pouco assustada.
Markus sorriu com os lábios unidos.
- São seus pais.
- Mas como? Meus pais estão viajando pela Europa.
- Não – disse Markus – aqueles são apenas dois personagens com rostos famosos. Esses são os seus verdadeiros pais.
Um flash de lembranças perdidas invadiu a mente de Mara. Ela se via pequena brincando no colo do pai, depois fazendo compras com a mãe.
- Olá querida – disse seu pai. Um homem baixo com sobrancelhas grossas e brancas. Algumas rugas no rosto. Cabelos brancos com algumas partes ainda um pouco escurecidas.
- Minha filha linda! – sorriu sua mãe. Ruiva, com muita maquiagem e um largo sorriso – minha pequena Alana – não se conteve e abraçou a filha.
Mara ficou imóvel e confusa.
Markus parecia contente em reunir aquela família. Mas estava na hora de contar toda a verdade.
- Esses são Walter e Eva Alcântara – começou ele – São pessoas boas, que sempre cuidaram bem de você quando era pequena. Alana, se você pudesse se lembrar o quanto era feliz ao lado deles...
Seus pais riam. Tudo parecia ensaiado para Mara.
- Verdade! – disse sua mãe ainda com aquele sorriso enorme – você era muito engraçadinha. Todos a adoravam. Riam muito de suas brincadeiras.
- Vocês são mesmo os meus pais? – perguntou Mara com a testa franzida - Mas como isso pode ser possível? A memória da minha antiga identidade foi apagada. Não pode ser verdade!
- Mas é, minha filha – disse sua mãe, o sorriso havia se apagado e uma expressão de condolência se formava em seu rosto – Nós fomos covardemente assassinados em um assalto.
- E advinha quem foi o assassino? – perguntou Markus.
Mara sentiu o coração martelar. As lembranças vinham rápidas e violentas. Mara via o assalto, o rosto do assaltante. Era Aluizio, seu próprio marido!
- Oh, meu Deus! – gemeu ela.
- Se contenha, minha filha – disse sua mãe abraçando-a – está tudo bem – voltou a sorrir, seus olhos estavam úmidos.
- Nós estamos bem agora que você voltou – disse seu pai se aproximando.
- Ora, contem logo toda a maldita verdade pra ela? – gritou Landa – ela também ajudou a matar os próprios pais! Ela e o namorado, que se chamava Max, mataram os pais dela para ficar com a herança! Ela é louca! Assassina!
As palavras de Landa se misturaram as recordações perturbadoras de Mara, que tremia, sem saber o que fazer. Ela realmente havia conspirado contra os pais. Agora ela via como era ambiciosa e má. Via todas as cenas. Ela e Max conversando sobre como deveriam agir. Depois via o carro de seus pais saindo da garagem e sendo abordado por um assaltante que na verdade era Max disfarçado. Ela assistia tudo na sacada de seu quarto rindo enquanto seus pais morriam. Depois interpretou o papel de órfã traumatizada para a polícia. No enterro chorou lágrimas falsas quando era consolada pelos parentes e amigos. Algumas semanas depois viajava para a Itália com Max. Eles estavam ricos, muito ricos. Mas os investigadores os desmascaram alguns meses depois. Foram deportados para o Brasil e condenados. Porém, como tinham muito dinheiro conseguiram comprar alguns contatos entre as autoridades e se submeteram a operação TI. Ficaram alguns meses ainda com aquelas lembranças. Sabiam que tinham muito dinheiro e que deveriam investir. Max decidiu abrir uma clínica de TI. Um empreendimento que trouxe um rápido retorno. Hoje eles vivem muito bem, mas com o sangue de seus próprios pais.
Mara sentiu seus olhos cheios de água e as lágrimas começaram a descer.
- Nós sabemos que a culpa não foi sua – disse sua mãe a consolando – você foi uma vítima como nós.
- O Max a manipulou – disse seu pai revoltado - Ele é o verdadeiro culpado!
Mara limpou as lágrimas.
- O que eu posso fazer por vocês?
- Queremos que você o mate – disse sua mãe.
- Mas eu não posso! Ele é meu marido!
- E nós somos seus pais! – gritou seu pai – Mate-o por nós!
- Eu não sei se consigo...
- Claro que consegue – disse a mãe – enforque-o enquanto ele estiver dormindo, envenene sua comida, contrate alguém pra fazer o serviço, mas mate!
- Esse é o certo a fazer – disse Markus – mate seu marido e venha viver conosco, comigo...
Landa se intrometeu.
- E eu? Como pode me deixar por essa assassina que matou os próprios pais?
- Landa – disse Markus – você é uma criança e já aprontou demais por hoje. Agora desapareça.
Landa desapareceu.
- Como você fez isso? – perguntou Mara.
- Aqui nesse mundo eu governo – respondeu ele acariciando o rosto dela – esse é o meu reino e posso fazer o que quiser. E se você quiser pode ser a minha rainha.
- Seria ótimo! – disse a mãe orgulhosa – minha filha, o Markus é um excelente rapaz, bonito, cavalheiro e dono de tudo isso que você pode ver.
- Vamos, querida – disse o pai – mate aquele assassino e venha viver conosco. Vamos ser uma família feliz de novo.
- Senhora – disse uma voz feminina ecoando pelo salão. Os outros convidados, um pouco assustados, olharam para os lados – Senhora, seu almoço vai esfriar.
Tudo ao redor se tornou branco. Mara tirou o capacete.
- Não gosto de ser interrompida no meio da minha novela.
- Sinto muito, senhora – disse o holograma.
- Tudo bem, Margarete. Agora me deixe só.
O holograma desapareceu.
Mara olhou para a bandeja que o pequeno robô - doméstico carregava. O sanduíche ainda cheirava bem. Cheiro de fritura. O robô, que mais parecia um carrinho, se aproximou.
Tarde da noite Aluizio chegou, parecia cansado. Tirou o terno, desabotoou a camisa e quando estava tirando a calça percebeu Mara na porta do quarto o observando.
- Como foi o dia no trabalho? – perguntou ela.
- O de sempre... – disse ele desabotoando os sapatos – mas estamos com planos de aumentar o laboratório. A demanda está grande – olhou para ela – E você? Fez o que o dia inteiro? – depois sorriu e com bom humor disse – Já sei, não fez outra coisa a não ser atuar naquela novela interativa.
- Hoje foi o último capítulo – disse ela sorrindo.
- E como terminou?
- Você nem acredita – com um ar de mistério ela continuou – mas nós na verdade somos Alana e Max, um casal de namorados psicopatas e matamos os meus pais para ficar com o dinheiro deles. Depois nós submetemos a operação TI para esquecer tudo e começar uma nova vida. Foi com esse dinheiro que você abriu a clínica.
- Hahahaha.
- É sério – riu ela –nós somos assassinos.
- Essas novelas interativas estão ficando cada vez mais criativas – disse ele – Já estão inventando cada coisa!
- Se você acha isso imagina se visse os fantasmas deles falando comigo! – disse ela com um meio sorriso - O Markus ainda revelou que meus pais na novela são apenas “personagens com rostos famosos” e aqueles fantasmas eram os meus verdadeiros pais!
- Meu Deus! – sorriu ele – Isso é muito sobrenatural!
Eles riram juntos. Mas depois ficaram em silêncio.
-Tem certeza que as informações das nossas antigas identidades foram completamente deletadas? – perguntou ela.
- Mas é claro – respondeu ele – Por quê?
- Não é nada...
- Você não está levando essa história de assassinato a sério, está? – perguntou ele com um sorriso.
- Claro que não.

quarta-feira, abril 22, 2009

A CARONA - CONTO

A CARONA Por R. Moreno

A consciência voltou com uma forte dor de cabeça e Gisele tentava se lembrar o que havia acontecido. Para ela, ainda estava em casa ajudando seu marido a arrumar as malas para a viagem. Mas ao abrir os olhos viu o rosto dele, com a cabeça virada para baixo, olhando para ela com uma perpétua expressão de pânico talhada no rosto. Sangue seco escorria pela testa. Não respirava, isso era fácil de notar. Aquela visão de horror, suas costas doloridas e suas feridas ardendo a fizeram gritar por ajuda. Mas estava presa dentro de um carro virado no meio do nada. Seu grito correu pela estrada sumindo no ar. Milagrosamente ela ainda tinha forças para sair. Destravou o cinto de segurança e com uma força que nasceu do desespero conseguiu abrir a porta e cair do lado de fora. O carro, ou o que sobrou dele, rangeu. Ela estava suja de lama. As roupas rasgadas. Percebeu um corte de leve na canela direita, mas conseguia andar normalmente. Seu corpo doía, no entanto, só sofreu ferimentos superficiais. Todavia, não conseguia achar que tivera sorte. Estar viva naquela estrada deserta onde apenas o mato e algumas árvores pequenas lamentavam em silêncio seu sofrimento era de tirar qualquer esperança. Gritou mais alto, mesmo sabendo que era inútil. Chorou bastante de joelhos na lama. Ela só queria uma carona para sair dali. Faria de tudo por isso, até vender a alma. Nesse momento escutou um barulho de motor. Olhou apressada para a estrada. A ânsia desesperada era visível em seu rosto e gestos. Um ônibus preto e com desenhos estranhos se aproximava. Ela gritou e balançou os braços. O ônibus passou por ela diminuindo a velocidade e parou alguns metros adiante. Abriu a porta. Gisele se aproximou. Um homem, ou uma sombra, ao volante pediu para ela entrar. Rapidamente ela entrou pedindo para ele lhe deixar na cidade mais próxima. Ele riu baixo. A porta se fechou. Dentro, vários outros passageiros sem expressão alguma olharam para ela. Pareciam pessoas de luto num funeral. O ônibus partiu desaparecendo na estrada, deixando para trás o carro virado, com o motorista morto de cabeça para baixo, e, ao lado, o corpo de sua esposa com o pescoço quebrado.

sexta-feira, abril 17, 2009

O ASSASSINO TE ESPERA NA ESQUINA - Conto

O ASSASSINO TE ESPERA NA ESQUINA Por R. Moreno®

Todos temos medo de algo, quanto a isso não há nada de errado. Medo de voar, de ser assaltado, de ser atropelado, perder um ente querido ou perder uma oportunidade única na vida. Tudo isso é normal. Aliás, esse medo saudável que todos sentimos é necessário; é ele quem calcula os nossos limites. Sem isso, existiria uma síndrome enorme de “super-homens” pondo em risco suas vidas e de outras pessoas, pois, se não houvesse limite muita gente ia querer acelerar o carro a 300 por hora, outras iriam desafiar policiais armados, os mais loucos andariam no meio da pista, as mães deixariam seus filhos de pouco mais de um ano brincarem sozinhos na rua, haveria muitos roubos, brigas e homicídios e tudo seria um caos. Por isso, o medo é necessário. No entanto, tem pessoas que usam essa idéia para justificar sua covardia patológica. Uma delas é Wagner, um simples corretor de imóveis, que paga suas contas, ajuda a mãe doente, frequenta a igreja aos domingos e vai duas vezes por mês ao cinema, perto de sua casa. Quem ia querer machucar alguém tão insignificante? Nem inimigos ele tem! Ao menos, não declarados. Mas ninguém tem motivos para odiá-lo a ponto de querer sua morte. Wagner é o tipo de pessoa que faz de tudo para agradar a todos, justamente para evitar inimigos. Um dia, Caio, um corretor mais novo, andava sem muitos negócios para fechar. Suas vendas caíram e estava preste a perder o emprego. Tudo que fez foi apenas conversar com Wagner e pedir uma pequena ajuda com as vendas. Wagner se recusou no inicio, mas depois que Caio aumentou um pouco o tom de sua voz e tornou a pedir, Wagner refletiu sobre a situação. Ele andava com umas vendas boas e por isso não custava nada ajudar um amigo. Principalmente quando ele tem o dobro do seu tamanho. Foi então que Wagner repassou para Caio o contato de três clientes interessados em comprar dois apartamentos de classe média e uma modesta casa perto do centro da cidade.
Wagner também costuma dar boas gorjetas nos restaurantes onde almoça. Mesmo que o atendimento seja de péssima qualidade, é preferível engolir isso a engolir um suco de laranja com urina ou cuspe. Ele conhece as histórias sobre alguns lugares onde os garçons costumam fazer certas brincadeirinhas com os pedidos de clientes resmungões e que dão pouca gorjeta. Também não possui carro, só de pensar no trânsito violento dessa cidade perde qualquer interesse em tirar uma habilitação. Além desses problemas, Wagner também tem medo de cachorro, de gato, de sair sozinho a noite, de dormir no escuro, ver filmes de terror, entre outras coisas. Quem o conhece, sabe: Wagner é o cara mais medroso da cidade. Todavia o que poucos sabem é que houve uma vez em que ele agiu com bravura. Isso aconteceu há alguns anos. A história começa numa noite sem lua, com o bafo frio e molhado da chuva que se fora poucos minutos atrás entrando pela janela aberta por onde podem ser vistos centenas de pontos luminosos, que poderiam ser vaga-lumes pintados numa tela se não fossem apenas as luzes de prédios distantes. Wagner está sentado assistindo o jornal. Na tela, o jornalista fala sobre política, ou complô contra algum deputado, ou corrupção que pode levar a morte de alguém. “É por isso que eu nunca vou me candidatar.”, pensa Wagner. Além do jornalista, Wagner vê o reflexo translúcido de sua imagem na tela. Se não fosse ele diria “Nossa! Como esse cara parece doente!”, e não seria à toa. Wagner está mais magro, quase cadavérico, tem medo de comer muito e ter problemas de colesterol; seu rosto está pálido, com olheiras que quase não são visíveis na tela, mas existem e estão lá; cabelos bem aparados, para não ter piolhos. Sua barriga sobe e desce lentamente como um gato de estimação atento a qualquer movimento de possíveis predadores.
O telefone toca acordando-o do transe. Quem poderia ser? Wagner não recebe muitos telefonemas. Ele atende com ânsia e, medo, não sabe exatamente de que, mas teve um pressentimento ruim naquele momento. Ninguém liga a essa hora. Não para ele. Atendeu ao telefone e balbuciou:
- Alô?
Houve um silêncio de um segundo que durou um século. Uma voz fria e masculina, quase aos sussurros disse:
- Você é um homem morto!
Wagner congelou dos pés a cabeça. Com os lábios secos e rachando perguntou:
- Quem está falando? - sua voz soou firme e segura, era ele inconscientemente tentando parecer corajoso.
- Eu estou perto, bem perto e vou te matar, seu imbecil! - continuou a voz.
Wagner não conseguiu conter o medo e gagejando disse quase aos gritos:
- E-eu v-vou chamar a polícia!
Mas ele não sabe se o outro o ouviu, já havia desligado. Seu corpo estava muito trêmulo e tenso. Rapidamente colocou o telefone no gancho como se isso fosse suficiente para manter seu assassino à distancia. Correu para a janela onde as luzes de alguns apartamentos já se encontravam apagadas e, se ao invés de uma janela fosse realmente uma pintura, apenas uns poucos vaga-lumes ainda brilhariam estáticos na noite, os outros teriam sido vítimas de uma morte repentina. Olhou para baixo, estava no quinto andar e a rua não parecia tão distante daquela altura, muito menos o telefone público de onde um homem misterioso saía. Wagner fitou seu rosto forçando a vista o máximo que pode, e o estranho retribuiu o olhar. Alguns segundos de reconhecimento foram suficientes para Wagner reconhecer aquele rosto que o encarava com um olhar frio e indiferente, típico de homicidas sem remorso. O estranho com cabeça calva, olhos afundados num rosto gordo e branco como massa de pão e boca pequena e fina como a de uma criança deu de ombros e partiu voltando para o esconderijo de onde veio e para onde levaria o corpo putrefato de Wagner assim que surgisse uma oportunidade.
Wagner não dormiu naquela noite, apenas cochilou alguns minutos. Entretanto, qualquer barulho o deixava desperto com as têmporas latejando de tensão. No fim da madrugada sonhou com aves negras caindo mortas do céu. O dia começou com uma chuva fraca e um frio semelhante ao da noite anterior. O sol preguiçoso ou com medo se recusava a sair de trás das nuvens e a rua parecia uma extensão de algum pesadelo que já esquecera há muito tempo, era sombria e deserta demais. Wagner caminhava pela calçada molhada e se deparou com o orelhão em frente ao seu apartamento. Sentiu uma náusea gelada e andou rápido olhando para os lados. Agora, já perto da parada onde vê alguns rostos conhecidos que só cumprimenta com os olhos, Wagner se sente mais seguro para refletir sobre a ameaça de morte. Lembra-se da vez que estava indo para o trabalho num manhã não tão fria quanto essa. Escutou uma discussão vinda de um beco perto dali. Pareciam dois bêbados. Wagner se aproximou, com medo, claro, mas também com curiosidade. Imaginou dois mendigos, sujos e com a cara vermelha, mas viu dois homens que pareciam pais de família que têm problemas com bebidas e batem em suas esposas. A discussão era sobre algo fútil que Wagner não conseguia se lembrar. As vozes começaram a aumentar e logo depois estavam lutando, uma luta sem coordenação motora e sem golpes de um lutador profissional, mas não menos perigosa e mortal. Sangue começou a aparecer nos punhos e ombros deles. Até que um tombou, talvez desacordado ou, morto. Wagner se assustou e deixou cair umas sacolas de lixo atrás dele. O único bêbado que ainda se encontrava de pé olhou para trás e fitou Wagner com um olhar hostil. Wagner correu. Isso aconteceu há poucos dias, e desde então ele nunca mais viu o agressor, até a última noite quando foi ameaçado e o viu sair do orelhão. Ele se lembrava de Wagner e de alguma maneira havia conseguido seu telefone residencial. E pior, sabia até onde ele morava, senão não teria olhado diretamente para sua janela. Se houvesse outra pessoa para aconselhá-lo naquele momento, esta poderia dizer que o homem apenas olhou porque sua atenção foi tomada por um movimento vindo de uma janela e por um homem que o olhava assustado. Mas Wagner é muito paranóico e nem chegou a pensar nessa hipótese. Para ele o homem havia cometido um homicídio e queria calar para sempre a única testemunha do crime, ou seja, ele.
Wagner pensou em chamar a polícia, mas sabe como as coisas funcionam. Não havia provas suficientes para incriminar aquele sujeito. Apenas a sua convicção não iria convencer nem o escrivão. Estava sozinho. Aquele dia foi o início de um terror que durou quase duas semanas. Pra onde Wagner ia, lá estava seu carrasco só esperando o momento certo para agir. Se estivesse saindo do supermercado e cruzasse com ele na calçada, desviava andando rápido. Se fosse pegar ônibus e não tivesse ninguém andava mais uns dois quarteirões para pegar em outra parada mais movimentada, até que houve uma vez em que viu uma silhueta de um homem, quando se aproximou, lá estava o assassino apenas o esperando com aquela ar de indiferença. Wagner correu feito um louco e nunca mais pisou naquela parada. Outra vez estava assistindo a missa da manhã de domingo. O padre falava sobre como Jesus foi crucificado e traído por Judas. O sermão estava monótono e qualquer coisa era capaz de roubar a atenção de Wagner. Passos ressoaram pela igreja e Wagner olhou para trás, viu uma família com pai, mãe e uma garotinha se dirigindo às cadeiras da frente. No entanto, atrás deles, sentando na cadeira mais próxima da entrada, Wagner viu o assassino lhe encarando. Ele deu a volta pelo outro lado, perto da parede esquerda e saiu quase correndo para a rua. Foi percebido apenas pelos anjos desenhados nas vidraças da igreja.
Não dava mais para viver assim, Wagner deveria se mudar para outro bairro. Mas será que estaria livre daquela ameaça? E, se da mesma forma que o assassino descobriu onde ele morava e seu telefone também conseguisse descobrir sua atual localização? Wagner teve que optar pela outra idéia que estava se formando em sua cabeça: andar armado. Ele nunca gostou de armas, tinha muito medo delas, mas era o único jeito de se manter protegido. Ligou para um amigo:
- Alô! Motta?
- Sim? – respondeu uma voz viril e quase gutural da outra linha.
- Quem ta falando é o Wagner – sua voz parecia receosa.
- Que Wagner?
- O amigo de trabalho do Caio... – disse ele colocando ênfase no nome do seu colega de trabalho – ele apresentou a gente num bar uma vez, lembra?
- Ah, sim... Acho que me lembro – disse o outro – O que você quer?
Wagner sabia que não poderia citar armas no telefone, por isso tentou falar em código.
- Estou precisando de umas ferramentas, se é que me entende.
- Humm... Sei...
- Pode ser?
- Pode sim. Pede pro Caio te trazer aqui hoje à tarde.

O Caio quase se assustou e riu quando ouviu o que o cara mais medroso da cidade lhe dizia: queria que ele lhe levasse até o Motta, para comprar uma arma. Mas queria saber até onde aquela história ia levar e fez o que lhe foi pedido. Eles foram de carro até um subúrbio perigoso com ar fedendo a drogas, prostituição, assaltos e execuções. Wagner quase suja a calça de tanto medo, mas já estava ali e não dava pra voltar atrás. Eles desceram em frente a uma casa de alvenaria de dois andares e mal acabada. No muro da casa, pichações obscenas. Havia um pitbull no pátio que começou a latir. Wagner se afastou e só conseguiu manter a calma quando viu um dos homens do Motta puxar o cachorro pela corrente. Wagner e Caio entraram no portão, se identificaram e subiram. Motta os recebeu apenas com uma calça. Era velho, barrigudo e careca. Ele parecia mais amistoso do que no telefone, até ofereceu café, que Wagner não teve coragem de recusar. O quarto era grande, uma tv, um ar-condicionado desligado e uma cama de casal com duas adolescentes semi-nuas deitadas cheiravando cocaína. A conversa foi rápida:
- Então tem alguém lhe ameaçando de morte e você quer uma arma pequena para se defender – disse Motta franzindo o cenho.
- Isso mesmo, senhor... – disse Wagner numa voz quase inaudível.
- Ora, vamos parando com tanta formalidade – disse Motta fazendo um gesto com a mão direita – Senhor ta no céu.
- Desculpe...
- Acho mais fácil ele se matar com a própria arma do que atirar em alguém... – zombou Caio.
- Dê crédito ao rapaz... – disse Motta – essa é a chance que ele tem de mostrar pra si mesmo que é um homem. E acredito que vai conseguir. É preciso muita coragem pra vir até aqui.
Wagner se sentiu mais confiante.
- Vou te dar um revolver 22, leve e fácil de esconder.
- Quanto? – sua voz soou grossa.
- Te faço por cem.
Wagner pagou sem dizer nada.

É obvio que mesmo com a arma o medo não se dissipou completamente. Wagner se sentia mais seguro por um lado, mas por outro, morria de medo de ser pego pela polícia. Mesmo com a arma escondida por baixo da camisa, ele acreditava que ela estava visível. Decidiu andar com camisas grandes e de cores escuras. Quando caminhava pela multidão evitava tocar na arma, as vezes até esquecia que carregava ela. Mas sempre que chegava em ruas desertas deixava as mãos preparadas para qualquer movimento e pensava como conseguiu sobreviver sem aquele revólver. Deveria ter comprado ele antes. Andar armado, atirar e viver com um homicídio na consciência são três coisas completamente diferentes. Todos têm coragem de empunhar uma arma, mas poucos têm coragem de atirar e desses apenas uma minoria consegue conviver com isso. Wagner não pensou nesse detalhe quando apertou o gatilho naquele fim de tarde.
Estava chegando do trabalho. Eram seis e meia. A lua sorria amarela no céu. Wagner parou na padaria para comprar pão e um suco de laranja. Depois se dirigiu ao prédio onde morava. Pensava no apartamento de luxo que amostraria para um possível cliente no dia seguinte quando se deu conta de que estava sendo seguido. Olhou para trás rapidamente e viu o seu executor se aproximando. O céu escurecia atrás dele e seu rosto gordo parecia brilhar de tão branco. Ele estava perto. Apenas alguns passos entre Wagner e a Morte. Wagner andou mais rápido e percebeu que o assassino avançava com mais pressa. Wagner encostou a mão direita no volume preso na cintura. Estava gelado e ele não sabia se o frio era do aço ou do seu medo. Ofegava muito. Pensou em correr, mas poderia ser pior. O outro poderia estar armado também. O único jeito era ver quem atirava mais rápido e se tem uma coisa que aprendeu nessa vida além de vender imóveis é que a melhor defesa é o ataque. Pode soar estranho para alguém tão medroso, mas foi o que motivou Wagner a sacar a arma devagar e a diminuir o passo para ficar bem perto do alvo, assim não teria como errar. O outro se aproximou e quando estava a menos de dois passos disse “Ei, você...” tocando no ombro duro e tenso de Wagner que não esperou outra palavra. Virou rapidamente para trás ficando de cara a cara com aquele rosto grande, branco e com a boca pequena que ia pronunciar mais alguma coisa, mas que foi interrompido por três estampidos. O homem tombou de lado com três buraquinhos no peito. Wagner não sentiu nada. Nem remorso. Nem medo. Nem vigor no espírito. Ficou parado olhando aquele que até algumas horas lhe visitava em pesadelos frequentes, mas que agora não passava de um pedaço de carne caído no meio da calçada. Ouviu gritos histéricos de mulheres. Homens gritando coisas que sua mente não conseguia entender. Ouviu sirenes se aproximando e quando se deu conta do que havia feito ouviu o juiz no tribunal e o promotor lhe acusando. Seu advogado não teve muita eloqüência e nem soube contra-argumentar, até porque não havia o que dizer. Foi um homicídio doloso, a sangue frio, sem motivo nenhum, a não ser o que o acusado disse em sua defesa. Ele afirmou que estava sendo ameaçado pela vítima e que matou em legitima defesa. Uma desculpa que até o pior aluno de Direito sabia não ter fundamento. Primeiro porque ele estava usando uma arma ilegal, segundo porque existem leis e nenhuma diz que qualquer pessoa tem direito a fazer justiça com as próprias mãos, o correto seria fazer uma denúncia, e por último, não há provas de que a vitima havia tentado matar o acusado. Segundo os investigadores, o acusado havia deixado cair sua carteira na padaria e a vítima apenas tentou devolver, mas foi recebida com três tiros à queima roupa. O acusado foi condenado, mas ainda afirma que essa versão contada pelos investigadores é uma grande mentira, que ele agiu certo e salvou sua vida e agora vai ser mais um injustiçado atrás das grades. E essa foi a história de um homem que aprendeu a ser corajoso, mesmo cometendo um grande engano com isso. Agora a pergunta fica no ar: Se não foi a vítima que o ameaçou, então quem foi? Talvez esse seja mais um mistério sem solução que as autoridades não se importam em investigar. Eles já tem o acusado, a justiça foi feita e o caso está encerrado.

- Então, pessoal – disse o garoto de camisa da seleção brasileira – já escolheram um número?
Outros dois garotos folheiam uma lista telefônica. Um deles, de óculos, escolhe um número aleatório com o dedo indicador.
- Este aqui.
- Quem é? – perguntou o que esta usando camisa da seleção.
- Um tal de Wagner... – disse o de óculos – um idiota qualquer.
O outro que ajudava a folhear a lista, riu.
- Beleza! Vai ser ele – disse o de camisa da seleção tirando o telefone do gancho e discando o número.
-Alô?
- Você é um homem morto!
Os outro dois riam baixo, o de óculos quase não se controlava e apertava a barriga com as mãos.
- Quem está falando?
- Eu estou perto, bem perto e vou te matar, seu imbecil!
- E-eu v-vou chamar a polícia!

domingo, março 01, 2009

O LADO SOMBRIO - CONTO

O LADO SOMBRIO Por R. Moreno®
“Eu serei seu espelho
Refletirei o que você é, caso não saiba”
- I’ll be your mirror, The Velvet Underground.

- Muito bem, crianças... Quem fez o dever de casa? – perguntou Adriana.
Vários braços pequenos levantaram-se, exceto um, no fim da sala.
- Tiago, você não fez o dever? – perguntou a professora.
- Fiz, mas meu cachorro comeu... – respondeu um garoto em tom de desleixo, quase deitado em sua carteira e com os pés na carteira da frente.
- Essa desculpa eu não engulo... – disse a professora.
- Se não acredita eu posso trazer a merda dele até aqui pra senhora ver... – rebateu o aluno com sarcasmo.
“Hahahahaha”, a sala se pôs a gargalhar.
- Como ousa falar essas coisas na sala de aula? – gritou Adriana, enrubescida. A sala inteira ainda gargalhava e Tiago dava sorrisinhos sarcásticos com o canto da boca fingindo ignorar a professora. – Saia já dessa sala!
Tiago continuava na mesma posição. As gargalhadas foram cessando aos poucos.
- Mandei sair! – continuou a professora. Tiago ignorou novamente – É assim, Tiago? Pois tudo bem, eu vou chamar o monitor para levar suas coisas e lhe acompanhar até a secretaria – Adriana levantou-se da cadeira com tanta raiva que nem percebeu que estava muito próxima da mesa. Acabara de completar seis meses de gravidez e pela primeira vez esqueceu de afastar a cadeira para se levantar e bateu a barriga na mesa. Deu um grito alto e foi amparada por alguns alunos das carteiras da frente. Uma das alunas correu para chamar um dos monitores que veio às pressas.

- Está tudo bem, Joel... – disse Adriana respirando profundamente, apoiada no ombro do monitor – Só olha essas crianças pra mim enquanto eu vou ao banheiro... por favor – pediu ela.
- Claro, professora – disse o monitor – Ei, professora, a senhora deixou cair sua bolsa.
Adriana parou no meio do corredor. O rosto permanecia posicionado para frente, como se algo a impedisse de olhar para trás.
- Poderia pegar para mim?
- Claro que sim! – disse Joel ajuntando a bolsa.
Ele pegou a bolsa e entregou para a professora que estava de costas para ele estendendo a mão direita para trás.
- Obrigada, Joel – disse Adriana ainda olhando para frente.

Em um dos gabinetes sanitários, Adriana se aliviava da bexiga. Mas a cabeça doía bastante, até mais que a dor do golpe na barriga. Após sair do gabinete lavou o rosto na pia e permaneceu alguns segundos imersa em pensamentos com os olhos direcionados para a pia. Sua cabeça parecia pesar nos ombros. O barulho da torneira pingando ecoava livre pelo silêncio do banheiro.
- Esses diabinhos têm que aprender a me respeitar...! – sussurrou ela consigo mesma.
- É só deixar comigo... – de súbito, outro sussurro, vindo de trás de sua costa, fez todos os pêlos de seu corpo eriçarem-se.
- Vá embora... Eu não preciso de você – sussurrou Adriana de cabeça baixa. Um silêncio pairou por alguns segundos. Ela já se foi, pensou levantando o rosto devagar.
Ficou um instante imóvel, seus pés criaram raízes no piso. As canelas tremiam. Seu coração acelerou e seus olhos fitavam a imagem além do espelho à sua frente. Ana encontrava-se em pé atrás dela estendendo uma faca que lhe trazia lembranças ruins. Dois reflexos parecidos se observavam. Só não eram completamente idênticos pelas roupas e pela aparente diferença de idade. Adriana era uma mulher, vestida com roupas discretas que uma professora do ensino fundamental deveria usar, enquanto que Ana era uma adolescente vestindo apenas uma camisola azul de hospital. Mas fora esses detalhes ambas tinham a pele morena bem clara e um rosto com traços suavemente desenhados que timidamente se escondiam nos negros cabelos encaracolados pela falta de um penteado mais vaidoso. Todavia, Ana tinha certas peculiaridades na aparência que diferenciavam bem as duas. Os traços hostis de seu rosto e os seus olhos encolerizados expressavam um ódio doentio. Sua boca era nada mais que uma linha cinza como a de um defunto. Quando estendeu a mão direita oferecendo a faca exibiu uma cicatriz em forma de corte no pulso.
- Vá embora! – gritou Adriana. Ana desapareceu sem que os olhos da professora pudessem acompanhar. Mas Adriana sabia que, mesmo invisível, Ana sempre estará lá atrás lhe oferecendo aquela faca.
- Está tudo bem professora? – perguntou assustada uma das serventes mais velhas que acabara de entrar no banheiro.
- Sim, Maria... é essa gravidez que tá me deixando louca...!
- É normal, senhora... Todos os cinco que eu tive também me deram problema. Aliás, me dão problema até hoje...! Mas é assim mesmo...
Adriana não estava interessa em ouvir dicas de uma mãe mais experiente, por isso, com muita educação, interrompeu a conversa e se retirou do banheiro. Dirigindo-se à sala de aula, ouviu rumores no corredor. “Ela é esquisita...!”, “Nunca olha pra trás!”, “Acho que é maluca!” , “Fala baixo, seu imbecil!”. Eram ex-alunos seus que agora estavam na quinta série. Adriana fingiu que não ouviu nada, mas sabia até onde cada um dos quatro alunos morava, e inclusive era amiga dos pais de dois deles, entretanto, preferiu não criar confusão. Sabia de sua fama e não ligava. Nada a faria olhar para trás novamente, pelo menos até que Ana fosse embora para sempre.

Após a aula, Adriana tomava um suco na cantina assistindo as últimas notícias locais. “Mais uma vítima foi encontrada morta com vários hematomas pelo corpo. Trata-se de um rapaz de vinte e seis anos, deficiente físico. Segundo a polícia, ele corresponde ao perfil das vítimas do Espartano, o assassino que só mata pessoas fracas e indefesas, geralmente deficientes físicos. Até agora contam treze mortes.”
- É mesmo um covarde... – disse a balconista com desdém.
- Deve ser algum bombadinho de academia... – comentou o seu assistente.
Adriana observou atenta a imagem do corpo. Era um jovem, tinha um futuro, e mesmo com uma das pernas atrofiadas o estudante de medicina João Henrique dos Santos estava disposto a superar não apenas este obstáculo, mas qualquer outro que pudesse surgir. Era um verdadeiro exemplo. No entanto, alguém muito mau e preconceituoso impediu que este futuro médico seguisse em frente. Essa história deixa qualquer pessoa abalada e revoltada. Mas, misteriosamente, Adriana não sentia nada, nem um traço de compaixão perante o sofrimento da família. Para ela era só mais um corpo. Isso não estava certo e ela mesma se impressionou com tamanha frieza.
Seu marido foi buscá-la de carro como fazia todos os dias. Ela falou das dores de cabeça.
- Se você não se sente bem deveria pedir uma dispensa médica – sugeriu ele dirigindo a atenção para ela, as lentes de seu óculos de armação clássica refletiam o perfil inexpressivo de Adriana e o trânsito que ele ignorou por poucos segundos.
- Rui, eu já disse que ainda não preciso... – retrucou ela – são apenas dores de cabeça, é normal.
- Ana, você é teimosa...!
- Já disse para não me chamar de Ana! – exclamou ela – Meu nome é Adriana!
- Calma querida! Eu esqueci que você odeia esse apelido. Ainda não sei porque! É tão normal...
- Ele me trás recordações ruins, você sabe!
- Eu também fui um jovem rebelde, isso é coisa da idade...
- Não... Você não era como eu...

O almoço servido na mesa era estrogonofe de camarão, o prato favorito de Adriana e uma especialidade de Dora, a doméstica, que já estava com eles desde quando Adriana engravidou. Rui não queria que sua espose fizesse esforço por isso pediu para sua mãe que lhe indicasse alguém para cuidar da casa. Adriana não gostou da idéia no início. Ela dizia que poderia cuidar da casa mesmo grávida, e, além disso, uma doméstica seria uma despesa a mais. Na verdade ela tinha um pouco de ciúmes, medo de Rui contratar uma moça do interior com um corpo ainda jovem. No entanto, quando viu Dora, uma senhora de sessenta anos, se sentiu aliviada. Para completar Dora cozinha bem.
- Sente-se bem, querida? – perguntou Rui.
Adriana virou sua atenção para ele com um meio sorriso.
- Sim... estou bem...
- Então porque não toca na comida? É estrogonofe de camarão! Você adora! – disse ele num tom preocupado.
- Não estou com muita fome hoje...
- Tudo bem, mas se estiver se sentindo mal, me liga, não importa a hora. Você e o bebê são a minha prioridade no momento.
Adriana voltou a olhar a comida, mas seus olhos fixaram-se na faca que segurada com a mão direita. A lâmina tremia sutilmente refletindo a luz do sol que entrava pela janela acima da pia. Sentiu-se longe dali, vagando por lembranças que se abriam como feridas há muito cicatrizadas. Lembrou-se da vez que esmagou o rosto do gatinho de estimação de uma prima usando uma pedra do tamanho de um punho adulto. Ela tinha oito anos. Ana, como gostava de ser chamada, nasceu com uma forte tendência à violência. Isso os seus colegas do ensino médio sabiam perfeitamente. Ela vivia isolada, pois todos a temiam. Nem mesmo os mais fortes se arriscavam. Houve um que passou a mão na sua perna perto da cantina. Teve os dois dentes da frente quebrados e muitos arranhões no rosto. Aos dezesseis anos, Ana passou a colecionar facas de combate. Tinha desde canivetes pequenos até aquelas facas retráteis. Tinha uma retrátil de cabo emborrachado, que era sua favorita e sempre a carregava escondida no bolso da calça. Seus pais mandavam-na a psicólogos, mas de nada adiantava. Ana era um ente demoníaco escondido atrás do rosto de uma bela garota, que só não era mais bonita porque não se importava em chamar a atenção pela aparência. Não ligava para roupas da moda ou maquiagem.

- O que está fazendo? – perguntou Rui num impulso perplexo.
Adriana voltou ao tempo atual. Via que passava a lâmina da faca no punho esquerdo, bem leve e devagar numa brincadeira sádica e perigosa.
Dora também viu e não conseguia pronunciar uma palavra. Ofegava bastante e estava com os olhos arregalados e a boca aberta num gesto de espanto. Colocou a mão no peito como se sentisse alguma dor no coração.
- Querida, me de a faca – pediu Rui com muita calma, mas sem deixar de transparecer o medo – isso é perigoso e você pode se machucar.
Adriana soltou a faca na mesa rapidamente. Suas mãos tremiam muito. Ela não fazia idéia do como fez aquilo, era como se estivesse acabado de acordar na beira de um precipício.
Após o almoço, Adriana foi tomar banho, como sempre fazia. Ensaboava o ombro, o pescoço, as curvas, os seios e as coxas grossas com tanta delicadeza e sensualidade que faria qualquer herói mitológico esquecer as sereias e ninfas. Quando começava a ensaboar as mãos sentiu seus punhos coçarem. Lavou-os para tirar a espuma e viu uma cicatriz em cada um. Assustada, deixou o sabonete cair. Jurava que aquelas feridas haviam desaparecido. Com todos esses anos só haviam sobrado linhas brancas perceptíveis somente aos olhos mais atentos. Mas agora, elas estavam bem evidentes como se fossem feitas há poucos dias. Sentiu um leve toque de mãos nas costas. Ela sabia que não deveria olhar, mas, talvez quisesse desafiar o medo, pelo menos uma vez, e olhou para trás com o canto dos olhos. Não se surpreendeu ao ver Ana novamente com a mesma camisola azul de pacientes de hospital. Também não se surpreendeu quando ela lhe ofereceu aquela faca.
- Não, você não vai machucar a gente! – gritou Adriana – Não vou fazer isso de novo!
Três ou quatro batidas atrás da porta fizeram-na se conter.
- Querida! O que aconteceu? Tá tudo bem? – perguntou Rui.
Ana havia desaparecido.
- Está tudo bem... foi só uma barata... só isso! – disse Adriana.

- Como ela está?
- Ela está bem... – disse Rui ao telefone.
- Está acordada?
- Não, já está dormindo...
- Poxa, eu estava com saudades e queria falar um pouco com ela... Bom, não tem problema. Mas ela está tomando todos os remédios?
- Está Dona Célia, e eu não saio de perto até vê-la engolir o comprimido.
- Cuide bem da minha filha, heim! Você sabe que ela tem problemas.
- Estou dedicando todo o meu tempo a isso, pode ficar tranqüila.
- E o meu neto?
- Ele está bem protegido na barriga da mãe.
- Eu tenho medo que ela tenha uma recaída e ponha em risco a vida do bebê.
- Isso não vai acontecer, eu garanto.

- É a minha mãe? – perguntou Adriana, havia escutado toda a conversa do quarto.
- Sim, mas ela acabou de desligar... – disse Rui desligando o telefone.
- O que ela queria?
Num tom irônico Rui respondeu:
- O de sempre, saber como está a filhinha dela e o neto.
- Por que não me chamou?
Rui a olhou nos olhos e com um sorriso disse num tom carinhoso.
- Ora meu amor, você tem que descansar... Ela pode ligar outra hora, mas agora eu acho melhor você voltar para o quarto e dormir. – disse dando um tapinha na barriga dela.
- Mas, não está na hora dos meus remédios?
- Ah, sim, é verdade, os seus remédios... vou chamar a Dora.
- Ela já saiu. Acho melhor eu ir buscar.
- Não, não – disse Rui conduzindo-a até o quarto – deixa que eu cuido disso.

Adriana observava o comprimido. Sentia uma vontade de jogá-lo fora. Desde quando as perseguições de Ana aumentaram ela não conseguia engolir nenhum comprimido. Rui já havia voltado para o trabalho e ela teria toda a liberdade de jogar o remédio na privada como estava se acostumando a fazer, mas dessa vez tentava resistir, sabia que precisava daquilo para manter Ana longe de seu corpo, e de sua família. Entretanto, parece que Ana já tinha um certo controle porque, subitamente Adriana atirou o comprimido na parede que se desfez em incontáveis migalhas. De longe parecia farinha.

As cortinas abertas deixavam fluir no quarto escuro a luz do Sol que se escondia atrás dos mesmos telhados de todas as tardes. Sentada na cama perto da janela, Adriana analisava, curiosa, as cicatrizes nos pulsos com se observasse fotografias perdidas.
- Pegue a faca... – sussurrou aquela mesma voz que lhe assombrava desde o hospício.
- Me deixe em paz! Pela amordeus!
- Pegue a faca... – insistiu a voz.
As cicatrizes suscitaram na mente de Adriana devaneios esquecidos. O quarto se transformou no banheiro da sua antiga casa. A porta estava trancada. Tudo havia sido planejado minuciosamente. Seus pais estavam num jantar. A faxineira já havia ido embora também. Mesmo assim, Ana sentia um calafrio no corpo inteiro, o que fazia sua mão direita tremer a faca. Ia ser rápido. Em poucos minutos estaria livre dessa vida monótona.
Os cortes foram precisos e quase indolores, talvez porque metade da dor encontra-se na mente das pessoas. Linhas de sangue manchavam o branco do piso. A hemorragia acelerou. As forças se dissiparam e Ana tombou num barulho seco.
Ao acordar estava numa cama de hospital. Sua mãe, sentada ao lado, encontrava-se aos prantos com as mãos no rosto. Através da janela de vidro via seu pai conversando com o médico no corredor. Apesar de não ouvir a conversa poderia perceber que era um assunto grave; seu pai parecia calmo, mas seus gestos bruscos revelavam um nervosismo contido.
Passou mais alguns dias no hospital recebendo sangue de parentes, vizinhos e amigos da família. Recebeu a visita de alguns. Eles pareciam ter feito aquilo mais por seus pais do que por ela. Essa hipótese tornava-se evidente na maneira estranha como a olhavam. Não precisariam chamá-la de maluca, problemática ou suicida, só pelos olhares podia-se muito bem ler seus pensamentos. Ao sair do hospital foi internada numa clínica psiquiátrica. Submeteram-na a drogas e terapias. Mas nunca estava sozinha. Ana se negava a ir embora e abandonar Adriana nesse mundo hostil. Adriana tinha delírios freqüentes com Ana reclamando da injustiça de que estava sendo vítima. Eloqüentemente, ela convencia Adriana de que elas eram uma só e por isso precisavam uma da outra e não conseguiriam viver separadas. Ana lutou bastante até que as medicações se tornaram mais fortes, fazendo-a desaparecer aos poucos, mas prometeu que todas as vezes que Adriana olhasse para trás, ela estaria lá, tomando o lugar de sua sombra.
Depois de bastante tempo, Adriana pôde voltar à sua vida, dessa vez sem a essência maligna que a incitava a cometer atos violentos desde a infância. Estudou bastante, fez boas amizades na faculdade e aos vinte e cinco anos se formou como professora de ensino fundamental. Aceitou o pedido de casamento do primeiro homem que a tratou com dignidade e respeito, e que não temia sua fama de louca. Rui não é um homem bonito. É magro, testudo e usa óculos de velho, mas isso nunca incomodou Adriana porque os fortes de academia nunca lhe atraíram. Rui havia acabado de se tornar executivo de uma grande empresa e com a ajuda dos pais comprou uma casa para ele, sua esposa e os futuros filhos. O primeiro havia sido concebido há alguns meses.
Mesmo com a nova vida, Adriana nunca esquecera a promessa de Ana, por isso nunca olhava para trás. Houve vezes que ela viu Ana pelo espelho sorrindo atrás de sua costa, ou escutava os seus sussurros. Mas agora era bem pior. Há poucos dias, passou a ser assombrada diariamente. Estava pensando em voltar a procurar ajuda psiquiátrica, mas não queria passar por todo aquele sofrimento novamente. Acreditou (ou tentou se convencer) que era tudo conseqüência da gravidez, talvez depois que seu filho nascesse, Ana a deixaria em paz. Mas no fundo ela sabia que estava enganada.
Os devaneios passaram e Adriana voltou ao presente. Chorava sentada na cadeira implorando para que aquela entidade maligna fosse embora. Atendendo aos apelos os sussurros cessaram. A presença de Ana já não era mais sentida. Adriana se levantou devagar suspirando aliviada. Dirigiu-se ao banheiro. Passou perto do espelho grande do quarto onde por menos de um segundo surgiu um espectro acompanhando-a. Lavou o rosto e deitou-se na cama de lado. Acariciou a barriga e dormiu com o pôr-do-sol.
Sua mente foi levada a um cenário onírico que lembrava o jardim de sua casa. Viu um garotinho sentado perto das rosas. Deveria ter uns três anos.
- Mamãe... – chamou ele.
Adriana dirigiu-se a ele sorrindo.
- Do que você tá brincando, meu bem...? – perguntou ela.
O menino olhou para sua mãe com um doce sorriso. Exibindo as mãozinhas disse – Olha... – Seus pulsos estavam cortados e com manchas vermelhas derramando sangue. Ao lado de suas pernas encontrava-se uma faca com uma linha rubra no fio e pingos vermelhos na lâmina, a mesma faca que foi o objeto inseparável de Adriana na adolescência. Ela acordou aos gritos.
- Está tudo bem, querida? – perguntou Rui, calmamente. Estava sentado ao seu lado, dessa vez ele não parecia assustado com a atitude dela como das outras vezes – Já sei, foi só mais um pesadelo... – continuou ele com uma estranha ironia. Seu rosto estava coberto pela escuridão do quarto e apenas a silhueta e partes de seu corpo podiam ser vistas graças à luz da Lua, que iluminava somente um pequeno e limitado espaço, deixando o restante do quarto oculto na escuridão. Havia algo de errado, talvez nas palavras ou na atitude indiferente dele. Por um momento Adriana não reconheceu aquele homem.
- Estou bem... não precisa se preocupar...! – respondeu ela, afastando-se para o canto da cama.
- Está tomando todos os remédios?
- Sim... claro... – seus lábios estavam secos e tremiam bastante.
- Bom... – disse Rui – Fiquei sabendo do grito que você deu hoje no banheiro da escola...
Adriana se afastou mais um pouco.
- Por que está se afastando? Está com medo de quê?
- Nada... Só que você parece estranho...
- Sim... Sou um estranho pra você – disse Rui – Sabe querida, hoje pela manhã, quando você disse que não eu não era como você, estava enganada. Somos muito mais parecidos do que imagina. Sei porque tem medo de olhar para trás e porque odeia quando te chamam de Ana. Sei também que passou um tempo no hospício. Você se esforçou para deixar de ser quem realmente é. Isso sempre me entristeceu. De alguma maneira encontrei em você uma pessoa igual a mim, que me entende, e acreditava que um dia voltaria a ser a querida Ana novamente. Sempre quis que a Ana me desse um filho, um novo demônio para continuar meu trabalho – aos poucos seu tom de voz ia tornando-se ameaçador – Matei muitas pessoas, todas fracas como você, e nunca descobri o significado da palavra remorso. Tudo que queria era ter uma família como eu, uma família que se empenhasse nas artes da tortura e assassinato, e que eliminasse qualquer inválido da nossa sociedade. E eu fiz de tudo para trazer a Ana de volta, até troquei os remédios por compridos de farinha. Mas mesmo assim, você estragou tudo! Você esqueceu quem realmente é! - gritou ele.
Adriana levantou-se da cama assustada e tentou fugir pela porta, mas Rui se antecipou e bloqueou a única saída com seu corpo.
- Se afaste de nós! Seu maluco! – gritou ela com as mãos na barriga tentando defender o filho.
Rui sorriu sadicamente.
- Você me decepciona cada vez mais... mesmo sabendo como se tornou fraca, por um instante eu imaginei que reagiria. Mas, ao invés disso, você se esconde como uma galinha. Provavelmente nosso filho corre o risco de ser fraco também. Isso seria uma decepção ainda maior. Pelo jeito, a única coisa que me resta agora é matar os dois. – subitamente Rui colocou as mãos no pescoço de Adriana apertando com muita violência. Ela defendia-se com socos que não faziam efeito. Rui ignorava os golpes sem aparentar sentir um mínimo de dor – Calma Adriana, em considerarão ao tempo que passamos juntos, sua morte vai ser rápida e não sentirá muita dor. Mas se tentar resistir vai ser pior.
Mais preocupada com a criança que carregava do que consigo mesma, Adriana dobrou os dedos da mão direita em forma de garra. Suas unhas estavam grandes. Rapidamente arranhou o rosto de Rui causando quatro cortes profundos que demorariam a sarar.
- Sua vadia! – ele gritou soltando as mãos do pescoço dela.
Adriana aproveitou a oportunidade e correu em direção ao banheiro do quarto. Trancou-se no momento em que Rui tentava alcançá-la. Ele bateu na porta várias vezes gritando palavrões e fazendo ameaças. Adriana se afastou trêmula para perto da pia. Sabia que ele daria um jeito de entrar. Foi então que Rui jogou seu corpo contra a porta que cedeu. Adriana gritou correndo para perto do chuveiro. Rui caminhou calmamente para dentro do banheiro apreciando o gosto daquele jogo de gato e rato. Com um toque brusco acendeu a luz. Seu sorriso sádico era visível agora. Adriana estava encolhida dentro do box do chuveiro, ofegando desesperadamente. Rapidamente Rui segurou-a pelo braço direito puxando-a para cima com força. Empurrou-a contra a parede do chuveiro e deu um soco em seu rosto. Chutou-a várias vezes chamando-a por nomes vulgares. Adriana encolhia-se chorando e tentando defender a barriga. Rui levantou-a com força e começou a sufocá-la novamente.
Adriana sentia seus músculos amolecerem e quando estava prestes a se entregar para a morte, a mesma voz que a assombrou durante muitos anos sussurrou novamente ao seu ouvido:
- Pegue a faca...
Adriana, sem pensar duas vezes, levou a mão direita aberta para trás de sua costa. Sentiu os dedos suaves de Ana entregando-lhe a faca. Com as últimas forças Adriana desferiu um golpe mortal na barriga de Rui, depois, sem tirar a lâmina, rasgou a carne em sentido vertical, para cima. Com a boca aberta de espanto Rui cambaleou para trás, livrando sua barriga da lâmina com um barulho líquido. Inutilmente, colocou as mãos no corte para conter a hemorragia. O sangue escorria pelos dedos.
Ele não gritou e tampouco tentou atacar novamente. Como último gesto, contemplou sua esposa assassina com um diabólico sorriso de admiração – Seja um bom exemplo para o nosso filho... – foram suas últimas palavras antes de tombar morto.
- Agora vocês estão salvos... – disse Ana.
Adriana, ainda trêmula e ofegante, olhou para trás. Não sabia porque fez isso, talvez para agradecer. Olhou para Ana que sorria satisfeita. Soltou a faca, um peso que não agüentava carregar mais, em seguida acariciou a barriga com muito cuidado e carinho.