sexta-feira, março 12, 2010

OLHOS DE UM ARTISTA - CONTO

OLHOS DE UM ARTISTA

Quando Luciano abriu os olhos pela primeira vez depois de tantos anos, sentiu lágrimas quentes correrem pelo rosto. A visão não poderia ser a melhor. Seus pais e seu irmão mais novo. Ao seu lado encontrava-se uma enfermeira e o médico. Mas seus olhos se focaram na família. Não conseguia reconhecê-los direito; estavam mais velhos. Seu pai já tinha cabelos brancos, sua mãe apresentava algumas rugas e seu irmão, que era um garotinho magricelo, agora era um homem feito: alto e com barba. Era a primeira vez que os via depois de mais de dez anos na escuridão. Desde aquele dia quando a frigideira caiu derramando óleo quente sobre seus olhos as únicas coisas que via eram imagens criadas pela sua imaginação. Mas com o tempo isso se tornou difícil, pois as cores já não eram mais que lembranças vagas e era comum confundir vermelho com laranja ou verde com azul.
Os pais lacrimejavam e o irmão, sorrindo com os lábios cruzados, fez um cafuné em sua cabeça e disse:
- Bem vindo de volta ao mundo das cores, mano.

A família planejou um jantar social para comemorar. Convidaram os amigos mais íntimos, todos os familiares e o médico que cuidou dele, o Dr. Ernesto. Luciano recebia a todos com um sorriso cheio de dentes. Aceitava ser fotografado com os amigos e primos, mas evitava o flash, pois seus olhos ainda estavam um pouco sensíveis.
Luciano não conseguia conter as lágrimas; ninguém poderia dizer ao certo se eram lágrimas de felicidade por voltar a enxergar ou de tristeza pelas coisas bonitas que foi privado de ver durante todos esses anos. Luciano tinha tantas coisas para conversar que nem se preocupou em comer. Estava ansioso para voltar a ver um filme e ler um livro. No fim da festa o último a sair foi o Dr. Ernesto. Estava ébrio e talvez por isso sorria como um bobo. Luciano nunca tinha visto alguém alcoolizado, mas imaginava-os sorrindo daquele jeito. Seus olhos brilhavam atrás das lentes quadrangulares do óculos. Por um momento o efeito do álcool parecia ter se esvaído. O médico colocou a mão esquerda sobre o ombro do rapaz e falando baixo, para que apenas Luciano pudesse ouvir, disse:
- Cuide bem dessas novas córneas, rapaz – suas bochechas caídas como as de um bulldog balançavam e Luciano sentia o cheiro de álcool no ar – elas pertenceram a alguém importante.
Luciano não deu atenção aquilo. Apenas sorriu e o encaminhou até um táxi.

Seu primeiro dia após a operação na repartição pública onde trabalha foi como um dia de celebridade. Todos o cumprimentaram e eram receptivos. Ele não gostou muito daquilo; uma das coisas que mais desejava era ser tratado como igual, e toda vez que era recebido com uma atenção exagerada sentia-se de volta a cegueira, quando ainda era um deficiente que precisava de cuidados especiais. Mas sabia que não faziam aquilo por mal, por isso sempre retribuía com aquele sorriso amarelo que andava praticando todos os dias em frente ao espelho.
A única coisa que ainda incomodava Luciano era uma luz que via ao redor de todas as pessoas como se seus corpos fossem feitos de algum metal brilhoso. De longe todos pareciam seres luminosos. Nada que pudesse atrapalhar sua visão, mas ainda assim era algo estranho.

- Sua visão está perfeita – afirmou Dr. Ernesto com convicção. Uma aura de luz dava-lhe uma aparência divina e Luciano não sabia se olhava para ele ou para a aura.
- Mas será que não é algum efeito colateral causado pelo colírio que o senhor me passou? – perguntou Luciano.
- Não, Luciano – retrucou o médico unindo as mãos inconscientemente sobre a mesa como se sentisse frio – eu lhe asseguro de que sua vista está em perfeito estado. Talvez você esteja apenas vendo coisas, nesse caso o problema está em sua cabeça, por isso sugiro que procure um psiquiatra.

Luciano não foi a nenhum psiquiatra, tampouco comentou isso com mais alguém. Imaginava que pudesse ser sua mente se readaptando a realidade. Foi então que viu um deles pela primeira vez.
Quando estava na parada de ônibus viu um rapaz, talvez da idade de seu irmão, de mãos dadas com a namorada. Ele era alto, cabeludo e usava uma camisa colorida e uma bermuda – parecia um palhaço e Luciano tentou se controlar pra não rir. Ela era menor, bem pequena e usava uma saia enorme e engraçada que uns tempos depois descobriu tratar-se de uma saia indiana. Ambos brilhavam como todas as outras pessoas, no entanto, Luciano percebeu uma outra luz, dessa vez um ponto luminoso de cor violeta, flutuando ao redor do casal. A luz dançava no ar emitindo um barulho agudo que apenas alguém com uma audição muito treinada poderia ouvir, uma audição como a de um cego, ou ex-cego. Luciano não sentiu medo, nem sequer fez algum gesto brusco para avisar o casal de que estavam sendo seguidos por uma luz violeta que parecia viva, até porque era notável que apenas seus olhos poderiam ver esse estranho fenômeno. O casal subiu em um ônibus e Luciano nunca mais os encontrou, nem sequer descobriu seus nomes ou onde moravam, ou se ficaram juntos pelo resto da vida, mas aquela cena se repetiria perpetuamente em sua cabeça.
Outros pontos luminosos brilhavam nas ruas. Eram de várias cores. Luciano achou que muitos anos na escuridão o tivessem deixado louco. Mas só começou a temer quando um desses seres se aproximou; era de cor violeta como o que seguia o casal. Luciano correu e entrou em um shopping center. Retomou o fôlego, mas ao olhar ao redor, vários focos de luz pairavam acima das cabeças das pessoas. Ele se afastou para perto da parede. O ponto luminoso de cor violeta que o seguia se aproximou e o observou por alguns minutos, em seguida foi embora.
Luciano criou forças e correu, empurrando algumas pessoas que responderam com insultos. Entretanto, nenhuma daquelas criaturas o seguiu, mas isso não foi um alívio, pois elas o observavam como se tivessem algo planejado.
No ônibus, ele mal sentia seu corpo trêmulo. Havia poucos passageiros e alguns daqueles focos luminosos voando. Eram cinco de cores diferentes. Elas voavam acima do cobrador, do motorista e das outras três pessoas.
Finalmente chegou em casa. Pensou em contar o que aconteceu, mas imaginou que ninguém acreditaria. Trancou-se no quarto e não tinha pretensão de sair de lá durante o resto do dia.
Ouviu duas batidas na porta.
- Filho, você está bem? – perguntou sua mãe com uma voz demasiadamente preocupada que às vezes lhe aborrecia.
- Estou bem! – respondeu com grosseria.
A porta se abriu bruscamente.
- Fale direito comigo – exigiu a mãe.
Luciano viu um foco de luz roxo voando perto do ombro dela.
- Está me ouvindo? – continuou ela com mais rispidez – eu sou sua mãe e exijo respeito!
O corpo dela brilhava como as outras pessoas, entretanto esse brilho foi desvanecendo ou adquirindo outra tonalidade, mais fraca e translúcida. Enquanto isso o globo de luz continuava dançando sobre seu ombro; parecia mais vivo e brilhante. A pele de sua mãe parecia lívida, com olheiras no rosto.
- A senhora está bem? – perguntou Luciano subitamente.
- Claro que sim! – respondeu ela ainda com rispidez. Em seguida bateu a porta e foi embora.

O Dr. Ernesto ainda estava de pijama quando o telefone tocou. Sua esposa resmungou na cama – ainda não se acostumara com as emergências do marido. O despertador na prateleira marcava cinco e trinta. O telefone tocou novamente como uma criança chorando cada vez mais alto para chamar a atenção.
- Alô... – disse o médico numa voz fraca.
- Alô, Dr. Ernesto. Aqui é Luciano, um dos seus pacientes – a voz parecia distante e o médico balançava de sono.
- Oi, Luciano... – continuou o médico ainda sem forças na dicção – como está indo com as novas córneas?
- É sobre isso que quero falar, doutor... Acho que tem alguma coisa errada. Aquelas alucinações estão ficando cada vez mais freqüentes!
- Já procurou um psiquiatra?
- Eu sei que não sou louco, o problema não está na minha mente.
- Sim, claro... – disse o médico – mas eu posso lhe garantir que sua visão está perfeita.
- Eu não duvido disso. Mas eu preciso saber de uma coisa.
- Diga?
- Quem era o dono original dessas córneas?
- Por que você quer saber? Isso não tem nada a ver com...
- Estou vendo uns globos de luz voando por aí... parecem que estão vivos!
O médico ficou em silêncio por um momento.
- Me encontre as oito da manhã no meu consultório. Agora devo voltar para cama, senão não terei disposição para podermos conversar.

Sete e trinta Luciano já se encontrava na porta do consultório. O médico chegou em seguida. Ambos se cumprimentaram formalmente e entraram.
- O que você entende de artes plásticas? – começou o médico.
- Eu confesso que nunca apreciei um quadro, mesmo antes de ficar cego.
- Muitos deficientes visuais acabam se interessando pelas artes que não podem ver. Já tive muitos pacientes que se tornaram artistas plásticos.
- Mas eu realmente nunca me interessei muito por isso.
- Pelo menos já ouviu falar de Vinícius Sabino? – indagou o médico debruçando-se mais sobre a mesa. Luciano se viu refletido nas lentes quadrangulares do óculos dele.
- Sim, meus pais falam sobre ele às vezes.
- Vinícius Sabino foi um grande artista plástico, mas no auge de sua carreira teve uma parada cardíaca e morreu. É uma pena... Sabino estava produzindo seus melhores quadros...
- Ele era o dono das córneas?
- Sim.
- Você sabe se ele via alucinações?
O médico respirou fundo, endireitou-se na mesa sutilmente, ficou ereto e até parecia mais magro naquela posição. Sem mudar a seriedade da voz disse:
- Tive a oportunidade de conhecer sua esposa, a senhora Diane Sabino. Ela me disse que alguns dias antes de morrer, Vinícius lhe revelou algo extraordinário. Segundo o que ela me contou, ele acreditava que existiam seres de luz que apenas ele podia ver e que se alimentavam da energia emocional das pessoas. Eram esses seres quem lhe davam a inspiração para produzir seus quadros.
Luciano arregalou os olhos. Quase aos gritos perguntou:
- Por que não me disse isso antes?
O médico sem perder a paciência respondeu.
- Achei que seria melhor você procurar ajuda profissional primeiro. Eu ainda acredito que se Vinícius via realmente esses seres de luz, provavelmente não estava com a saúde mental muito boa...
- Mas e se for verdade?
- Escute o meu conselho, rapaz – disse o médico – procure um psiquiatra.

Luciano saiu do consultório. Antes que fechasse a porta viu um globo laranja voando acima da cabeça do Dr. Ernesto. Assim como sua mãe, o médico parecia empalidecer aos poucos. Nas ruas outras pessoas eram perseguidas por outros globos de luz de diversas cores. Luciano chegou em casa e perguntou por seu irmão. Ele havia acabado de chegar, foi o que disse seu pai sentado no sofá assistindo os noticiários. Foi ao quarto do irmão. Lorenzo o recebeu com um sorriso sincero e feliz como se ele fosse um amigo que não via há muitos anos.
- Diga, mano? – perguntou Lorenzo.
- Preciso que você pesquise algo para mim na Internet.
- Claro! Entra aí.

Passaram algumas horas pesquisando sobre o trabalho de Vinícius Sabino. Lorenzo parecia curioso com o súbito interesse do irmão por artes, mas não fez perguntas. Lorenzo sabia um pouco sobre o trabalho desse artista. A mãe deles o admirava. O pai nem tanto. Os quadros de Sabino são abstratos e cheios de cores. Ás vezes, formas conhecidas são vistas, formas como pessoas ou animais que se misturam com outras formas sem sentido e desaparecem num caos psicodélico. Lorenzo não era muito interessado em artes, principalmente nas mais abstratas como as de Sabino, por isso só fazia criticar aquele monte de rabisco que qualquer criança de três anos faria melhor. No meio da pesquisa eles descobriram que até o próximo domingo os quadros do artista plástico estariam em exposição no centro de convenções da cidade.
No dia seguinte, Luciano foi um dos primeiros a chegar à exposição, mesmo assim não escapou de uma fila grande que crescia a cada momento. Vários tipos de pessoas de diversas idades esperavam no sol das dez as portas se abrirem. Várias luzes coloridas brilhavam acima dos visitantes. Mais alguns minutos de espera e a fila começou a andar. Um guia com não mais que vinte e cinco anos e que provavelmente era estudante de Artes surgiu da entrada do centro de convenções anunciando que a exposição estava aberta. Todos entraram e ele começou a explicação. Luciano se perdia constantemente no assunto. Estava atento as pessoas e os globos de luz que as seguiam. Sua atenção só retornou ao guia quando viu que ele parecia um cadáver de tão pálido. Olhou ao redor e todos estavam como ele. Pareciam um bando de cadáveres que não sabiam que estavam mortos. As luzes dançavam alegremente como se estivessem em uma festa, ou jantar. Todas brilhavam com mais intensidade.
Elas pareciam se alimentar da aura das pessoas tornando-as mais pálidas. Algumas pessoas começaram a queixar-se de dores de cabeça e sono. Mas não houve desmaios ou mortes súbitas. As luzes sabiam o momento de parar para não matar seu rebanho.
Após sair do centro de convenções Luciano se dirigiu à parada, onde ficaria sentado no banco deixando seus ônibus passarem, ainda estava sem ânimo para ir para casa. Sabia que não estava louco. Aquelas coisas eram realmente reais e não havia nada que ele pudesse fazer.
Sentiu um calor nos dedos e uma vontade de pegar em uma caneta. Sorte que tinha uma no bolso. Agora precisava de um papel. Encontrou uma folha de jornal perto do banco. Rabiscou alguma coisa. Não uma forma definida. Apenas rabiscos que surgiam em sua mente. Sorriu e em seguida jogou o papel fora.
Em casa pegou algumas canetas, lápis coloridos e folhas de papel da impressora do seu irmão. Trancou-se no quarto e começou desenhar, ou rabiscar. Vez por outra desenhava um homem ou carro e fundia-o a outra forma para dar outro sentido. Estava gostando daquele jogo de cores. Desenhou coisas que sonhara quando ainda era cego, interpretações suas do mundo que só conhecia pelo tato e pela audição, desenhou idéias estranhas que surgiam no ar, desenhou coisas que existiam e outras que nunca existiriam, e tudo que sua imaginação ousasse. Depois de terminar, viu que todos os seus desenhos não eram apenas um monte rabiscos, eram obras de arte!
Mostrou-os para a mãe que elogiou bastante. O pai também gostou muito e até Lorenzo não deixou de dar seus parabéns ao irmão talentoso. No entanto, o que eles não sabiam é que Luciano ainda iria muito longe.
Em alguns meses Luciano já era um reconhecido artista plástico. Sua família estava orgulhosa. Todos diziam que seu estilo lembrava muito o de Vinícius Sabino. Mas ele sempre relutava dizendo que Sabino não era nada além de um “colega de classe”, pois ambos bebiam da mesma fonte de inspiração. Essa fonte ele nunca revelou.

Um zumbido seguido de uma luz roxa tirou a atenção de Luciano do último quadro que pintava. Luciano viu um globo brilhante entrando no estúdio. À medida que o globo se aproximava linhas iam se formando no centro. Luciano viu um par de buracos completamente negros, um ao lado do outro como um par de olhos. Uma linha abaixo se abriu horizontalmente como se o globo fosse se partir ao meio. Dezenas de pequenos dentes pontiagudos brilharam como diamantes dentro de uma caverna. A boca se mexeu emitindo um barulho como de papel sendo amassado. Parecia pronunciar algumas palavras. Luciano permaneceu quieto. A criatura repetiu.
- Você está fazendo um bom trabalho. Eu e meus irmãos estamos orgulhosos. Seus quadros estão até melhores que os do nosso antigo servo. Continue assim e sempre será famoso e cada vez mais rico.
- Eu só queria voltar para minha vida simples... – retrucou Luciano tristemente.
A luz brilhou mais intensa dessa vez.
- Mas não pode! – gritou – Precisamos que produza cada vez mais quadros! Os fãs precisam de coisas novas para sentir emoções novas! – com uma voz mais amena, porém ameaçadora, continuou – Talvez você não tenha entendido direito por isso vou explicar mais uma vez. Essas emoções que apenas seus quadros produzem é o nosso principal alimento, pois é ele que nos dá forças para sair pelas ruas nos alimentando das emoções de outras pessoas. Por isso seu trabalho é necessário para nossa sobrevivência. Espero que entenda isso de uma vez para não causar problemas, e aceite a vida boa que estamos lhe dando; é o melhor que você tem a fazer. Mas se decidir ir embora ou contar algo para alguém nós o mataremos e colocaremos outro em seu lugar... Quem sabe seu irmão? Ele poderia sofrer algum acidente e ficar cego, mas não por muito tempo, pois herdaria as córneas do irmão morto...
Luciano empalideceu e gritou:
- Deixa meu irmão em paz! Não se meta com a minha família!
A criatura fez um barulho semelhante a um jornal sendo rasgado. Pelos movimentos da boca parecia ser uma risada.
- Volte ao trabalho... – ordenou a criatura – Não falaremos mais nisso.
Depois foi embora e deixou Luciano trabalhar em mais uma obra-prima que lhe daria mais fama e dinheiro, mas que em troca o tornaria escravo desses vampiros de luz para sempre.

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