domingo, novembro 23, 2008

MAU AGOURO - Conto

MAU AGOURO Por R. Moreno®

Núbia estava pronta para sair, faltava apenas organizar seus livros e cadernetas e pronto, mais um dia naquele colégio com adolescentes bagunceiros até o meio-dia, uma rotina que ela sentiria falta quando as férias chegassem, e estavam próximas. As provas estavam acabando e logo se veria sozinha naquela casa que pertencera a sua velha mãe, que Deus a tenha. A janela aberta do quarto revelava o sol acordando, brilhando fraco no céu. Era cedo e o frio da madrugada ainda era presente, mas algumas pessoas já caminhavam na praça em frente ao parque da Igreja Matriz, perto da prefeitura. Alguns carros passavam nas ruas, alguns modernos, outros já nem deveriam estar circulando. Não que seus proprietários pudessem ter algum problema com a justiça, afinal era a cidade de Lagoa D’Ouro, e apesar de ser um município em crescimento ainda irá demorar alguns anos para existir uma fiscalização adequada.
Quando Núbia arrumava os cabelos apressadamente em frente ao espelho a campainha tocou assustando-a. Quem poderia ser àquela hora? Provavelmente alguém não tão educado. Núbia se dirigiu à porta, a campainha tocou de novo, “Já vai!”, ela gritou. Abriu a porta devagar.
- Bom dia – disse um rapaz com sorriso brilhando e um pouco cínico – espero não ter acordado você?
- Não eu já estava de saída – disse Núbia um pouco desconfiada – quem é você?
- Meu nome é Armando – ele dirigiu a mão aberta a ela que apertou de leve apenas com os dedos – sou universitário e estou fazendo uma pesquisa para minha tese.
- E tem que ser agora?
Armando sorriu para disfarçar o constrangimento.
- Desculpe se apareci muito cedo – estava quase gaguejando – eu andei pela cidade ontem em busca de alguém que pudesse me ajudar e alguns moradores disseram que você pudesse me auxiliar, pelo fato de ser professora e muito inteligente. Eu passei ontem, mas não tinha ninguém em casa então decidi vir hoje de manhã, assim te pegaria antes de ir para o trabalho.
Núbia hesitou um pouco antes de pensar no que responder, ele era um desconhecido e já sabia muita coisa a seu respeito. Ela sabe que esse povo não a vê com bons olhos por ser a única pessoa lúcida naquela cidade, não seria de estranhar se mandassem um psicopata lhe perseguir a essa hora. Mas até que era um psicopata com um belo sorriso e parecia simpático.
- Bom e sobre o que se trata a sua pesquisa?
- É sobre crendices e lendas populares.
Núbia franziu o cenho fitando com um olhar como se quisesse dizer “eu não estou entendo bem”.
- Como assim?
- Eu sou estudante de antropologia e estou fazendo minha monografia sobre isso. O tema é: A Leitura Antropológica das Lendas e Crendices Populares do Município de Lagoa D’Ouro.
- E porque aqui?
Essa indagação fez Armando duvidar um pouco se estava diante da pessoa certa.
- Porque está é uma cidade cheia de superstições e lendas locais – respondeu com um meio sorriso no rosto, como se dissesse a coisa mais óbvia do mundo.
Essas palavras tornaram a feição de Núbia mais séria e inexpressiva. Armando sentiu uma coceira latejar na língua e aquela voz do inconsciente dizer “eu acho que você falou besteira”, seu rosto corou. Por um momento ele achou que ela fosse no mínimo expulsá-lo de lá e bater a porta na sua cara. Por sorte estava enganado.
- Estou atrasada agora – respondeu Núbia – me encontre no restaurante na frente da praça da igreja ao meio-dia e meia e lá nós conversaremos melhor.
Armando sentiu um alívio doce pelo corpo. Parecia que estava marcando um encontro, até pudera, uma mulher com aquela cintura fina e com aqueles lábios carnudos e pele bronzeada se não servisse para ajudar na pesquisa com certeza serviria para outra coisa.

- Uma pergunta... – disse Armando terminando de mastigar – por que quase todos os estabelecimentos daqui possuem uma escadaria com três degraus? Será que tem alguma coisa a ver com a crença de que entrar com o pé esquerdo dá azar? – o restaurante estava cheio e mal dava para conversarem com tanto barulho e a tv ligada no jornal local, por isso conversavam com as cabeças quase encostando uma na outra.
- Sim – respondeu Núbia cortando o bife – e todos aqui começam a subida com o pé direito, sendo o segundo degrau para o pé esquerdo e o terceiro novamente para o direito.
- Muito semelhante aos templos gregos – acrescentou Armando - As escadarias para subir ao altar tinham três degraus. Os gregos também evitavam entrar com o pé esquerdo.
Núbia não sabia daquilo, mas para não ficar por baixo da conversa acrescentou:
- Como vê essa cidade adota crendices de diversos lugares.
- Mistura de culturas.
- Pena que ela só parece absorver essas besteiras...
- Não diga isso... – disse ele num tom complacente – essas crenças fazem parte da identidade cultural da cidade. E isso deve ser preservado.
- Pelo jeito você ainda conhece pouco sobre esse povo daqui – Núbia parecia falar consigo mesma.
- Como assim? – Houve um momento de silêncio e a pergunta de Armando foi se esvaindo no ar.
- Então você chegou ontem pela manhã e ainda não encontrou nada? – perguntou Núbia quebrando o silêncio – já ouviu falar em biblioteca?
- Passei três horas seguidas na biblioteca municipal e só encontrei algumas matérias em revistas velhas locais – disse Armando após engolir o bolo de comida que estava mastigando – Nada de muito interessante, mas em uma dessas matérias é citada a sexta-feira 13 como uma crendice levada muito a sério por aqui. Só que não diz o motivo. Então saí para perguntar a algumas pessoas e todas preferiram mudar de assunto, evitando este como se fosse um tabu.
Núbia tomou um gole do suco de laranja pelo canudinho antes de voltar a atenção para a conversa.
- Essa cidade não é apenas um lugar onde as pessoas inventam histórias para impor limites aos filhos, aqui as pessoas realmente acreditam em todo tipo de superstição.
- Mas isso é normal em cidades do interior – disse ele.
- Você deve saber que Lagoa D’Ouro já não é mais uma cidadezinha de pessoas sem cultura – sua voz soou ríspida e orgulhosa – aqui tem profissionais que se formaram na capital, lêem jornal, assistem tv, mas ainda temem essas histórias que suas avós contavam.
- Eu não estou dizendo que aqui é uma cidade de gente burra – replicou o universitário aumentando um pouco a seriedade da voz – só estou dizendo que é comum existir pessoas supersticiosas no interior onde, é um fato, as pessoas são mais ingênuas.
- Eu não me lembro de ouvir o termo “gente burra” antes. E não estou lhe acusando de achar isso de nós. Aliás, se for realmente o que pensa saiba que não está tão equivocado. Só não deve me incluir nisso. Sou a única pessoa que parece estar acompanhando o crescimento da cidade. Olhe ao redor e veja você mesmo, a maioria das pessoas usa amuletos como figas e pés de coelho, às vezes um santo protetor, tudo para espantar os maus espíritos – Armando comprovou que ela estava certa, todos ao redor tinham algum tipo de amuleto, até atrás do balcão existia uma imagem da Nossa Senhora – Não querendo me desfazer do nosso folclore, mas é surpreende ver que em pleno século XXI ainda tem gente assim.
- E que bom – retrucou Armando – O folclore é o modo que um povo tem para compreender o mundo em que vive. Conhecendo o folclore de uma região, podemos compreender o seu povo, e conseqüentemente, parte de sua história.
- Você não entende – disse ela abaixando a voz, olhou para os lados para ter certeza que ninguém os ouvia e aproximou o rosto do dele, hesitou um pouco, mas concluiu – não se trata de preservar o folclore local, se trata de sanidade, coisa rara por aqui, essas pessoas realmente vivem ou acham que vivem num mundo imaginário cheio de sacis, lobisomens, curupiras e mães d’água. São todos uns loucos.
Armando sorriu e sentiu uma certa satisfação ao ver a expressão de vergonha no rosto dela ao perceber que ele não a tinha levado a sério.
- Acho que você está exagerando – disse preparando o último bolo de comida na colher – Você mesma afirmou que a cidade está crescendo, isso quer dizer que as pessoas estão amadurecendo intelectualmente, por isso, não é possível que ainda acreditem que...
- Não, não, você não está entendendo – interrompeu Núbia, já sentia a paciência chegar aos limites e com uma voz mais acadêmica, como se estivesse em sala de aula, decidiu tentar mais uma vez esclarecer a situação – Quer saber por que todos aqui temem a sexta-feira 13? Por que acreditam que a Besta anda pelas ruas caçando e matando quem estiver fora de casa, depois das seis da tarde. E isso não é tratado apenas como uma lenda, as pessoas daqui realmente acreditam nessa história e por isso ninguém sai de casa esse horário, até mesmo o comércio e a delegacia fecham. As ruas viram um verdadeiro deserto, não se vê uma alma andando.
- Ora, isso já é demais... – disse Armando e com um tom nostálgico acrescentou – quando era garoto eu e meus irmãos mais velhos íamos passar as férias no sítio dos nossos avós. A vovó também contava muitas histórias assim, mas era pra meter medo na gente. Eu, que era o caçula dos sete, era o mais medroso. Mas no fundo todos sabíamos que eram apenas lendas.
- Se não acredita, comprove – sugeriu ela – por coincidência amanhã é sexta-feira 13. Venha me visitar para tomar um café e tirar suas conclusões pela janela da sala.

- Núbia – chamou o balconista após Armando ter ido embora.
- Diga Seu Floriano – disse a moça se aproximando, já imaginara o que era.
Ao redor do balcão estavam outros velhos conhecidos da cidade. Todos a fitavam com um semblante sério.
- Eu não pude deixar de notar o quanto você e aquele estranho conversavam – disse Floriano – nada contra, a vida é sua. Mas ninguém da cidade gosta dele. Ele parece meio estranho.
- Foram vocês que disseram para ele ir até minha casa.
- Sim, mas não achávamos que vocês ficariam tão próximos.
Núbia não pareceu gostar daquele tom sugestivo de voz, mas preferiu não perguntar o que ele estava pensando.

Três batidas fizeram Núbia se levantar do sofá arrumando o vestido. Era um vestido negro e sensual que usava apenas em ocasiões especiais.
- Nossa! – exclamou Armando – se tudo isso é para me impressionar você conseguiu!
Ela deu um sorriso largo e natural. Parecia menos séria que das últimas vezes. Armando entrou sem esperar ser convidado, parecia que já era de casa. E entrou com o pé esquerdo propositalmente.
- Opa! Isso vai me trazer mau agouro – brincou.
- Ah,ah,ah.
Quem visse aquela cena juraria que eles tinham algum relacionamento íntimo, felizmente já era quase seis horas da tarde e não tinha quase ninguém na rua.
- Pode se sentar – disse ela indicando o sofá – estou preparando café com biscoitos. - Obrigado – Armando acomodou-se no sofá perto da janela. Sorria maliciosamente pensando em idéias que não teria coragem de comentar naquele momento, não tão cedo. Lá fora as poucas pessoas se recolhiam rapidamente. As lojas e salões de beleza estavam fechados desde as cinco e meia e a rua era um verdadeiro deserto como dissera Núbia. Apenas uma brisa fria corria farfalhando algumas árvores. A lua cheia observava tudo como um vigia noturno.
- Voltei – disse Núbia com uma bandeja com biscoitos e café.
Eles serviram-se e começaram a conversar.
- Vê? – Núbia apontava a rua – todo esse povo ingênuo foi para dentro de casa com medo da Besta. Pra mim as únicas bestas aqui são eles.
Armando achou graça.
- Você ainda está com esse complexo de superioridade – brincou.
- Não é isso – disse ela – é que me dá raiva!
- Ora... – disse Armando – e se eles estiverem certos?
- Está dizendo que acredita nessas besteiras?
- Não, mas em toda história existe um fundo de verdade.
O relógio na parede da sala marcava seis e cinco.
- Então porque você não vai lá fora ver a Besta e bater fotos – brincou ela – pode ficar rico.
- He,he,he – até que não é má idéia – pena que não trouxe minha máquina.
Armando se levantou e foi até a janela.
- Mas deve existir alguma verdade nessa história – agora usava um tom mais sério – É como o vampirismo. Você sabia que na verdade os “vampiros” na Idade Média não eram nada além de pessoas que haviam contraído a raiva? Só que naquela época não se tinha noção de que era apenas uma doença e atribuíam origens demoníacas. Por isso, essa tal Besta provavelmente nem existe de fato, mas alguma coisa deve existir para explicar a origem do mito. Você não acha?
Não houve resposta. Armando olhou para trás.
- Eu perguntei se você... – Suas palavras desapareçam bruscamente.
Não havia ninguém na sala.
- Núbia... – chamou ele.
Dirigiu-se à cozinha.
- Núbia você está a... – antes que pudesse terminar a frase soltou um grito que se misturou ao rosnado alto da fera de olhos dourados à sua frente. O grito de Armando só foi calado quando sua cabeça foi arrancada com um golpe de uma pata escura do tamanho de um rosto adulto. Sangue correu para o alto banhando os ombros de vermelho viscoso. Antes que o corpo pudesse tombar para trás, duas patas o agarraram com força e um focinho negro e peludo, semelhante ao de um lobo só que com os caninos maiores, avançou dilacerando o resto do corpo sem vida como uma marionete sem cordas. Em seguida a criatura caminhou em direção a porta que dava para a rua e foi à caça de mais uma presa que ainda estivesse fora de casa.