domingo, setembro 19, 2010

Olho Cego - conto

OLHO CEGO Por Rodrigo Moreno

Após o discurso bem planejado, Gilmar Furtado misturou-se ao povão abraçando cada voto em potencial. As pessoas se amontoavam ao redor dele, que era protegido por dois seguranças, e, logo atrás, vinha Gustavo Furtado, primo mais novo e assessor particular. No entanto, os três não impediam totalmente os eleitores de se aproximarem, apenas evitavam as aproximações bruscas. Gilmar sorria, demonstrando sua felicidade ao redor daquelas pessoas - mesmo que estivessem mal vestidos e com cheiro azedo, seriam eles que o tornariam o novo prefeito.

Alguns metros dali, na esquina, encontrava-se um sujeito parado escondido entre a sombra de um poste e o muro de uma padaria, fugindo do sol do meio-dia. Era nada mais que um detalhe naquele cenário. Quem o visse, o tomaria por um turista graças ao chapéu panamá, calça branca, camisa de flanela e óculos escuros de lentes redondas. Olho Cego estava preparado para o serviço. Pensou em fumar um cigarro antes, daria tempo, a experiência dizia isso. Acendeu um cigarro nos lábios rachados escondidos pelo bigode. Calculou a distância mentalmente, sem números ou fórmulas exatas. “Olha Cego”, às vezes ria quando se lembrava do apelido que ganhou após furar o olho de um bacana a uma distância que muitos consideram impossível. Ria mais ainda quando aquele veado do Betão falava “O único olho cego que eu conheço é o olho do c...”.

Esperou o melhor momento. Algumas pessoas fotografavam, outras perguntavam, e Gilmar era sempre receptivo. O momento estava chegando. Olho Cego não sabia como explicar, mas sempre que o momento propício estava perto uma intuição infalível lhe avisava, e não era a voz da experiência. Ele sempre teve essa intuição desde antes de entrar para o ofício. Como dito, Gilmar se aproximava do carro esporte verde-musgo que o aguardava. O candidato ia à frente seguido por seus guarda-costas e pelo primo e assessor. Olho Cego cuspiu o cigarro e preparou a pistola que estava presa à cintura, uma Beretta 9mm com silenciador. Preparou a mira, os punhos firmes como um tripé, sua visão se ampliou nos olhos do alvo – depois do serviço que apagou aquele bacana com um tiro no olho passou a aperfeiçoar sua “assinatura”. Gilmar se despedia dos seus eleitores e, sem imaginar, se despedia deste mundo também. Olho Cego já não ouvia mais nada além do silêncio de sua concentração, o resto do mundo estava mudo. A mira seguia o olho direito de Gilmar. Quando este estava entrando no carro o gatilho foi, enfim, pressionado. O barulho da explosão abafado pelo silenciador se reduziu a um som insignificante de uma pedra atirada na água e, antes que pudesse ser dissipado por completo, o olho do alvo era varado pela bala. Gritos, gritos e mais gritos. Era hora de ir embora.

Alguém indicou de onde veio o tiro. Algumas pessoas olharam para a esquina, não havia ninguém lá, e nem nos outros quarteirões ao redor.

Jornal local, controlado pelo partido do candidato:

“Candidato Gilmar Furtado morto com tiro no olho. Um herói que nos deixou.”

Jornal da oposição:

“Gilmar Furtado poderia estar envolvido com madeireiros.”

Ao dar seu depoimento para os policiais, Gustavo Furtado, indignado, tentava apontar possíveis responsáveis. No bolso, o celular vibrou. Ele não atendeu.

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