segunda-feira, novembro 20, 2006

ZONA DA ANGÚSTIA - Conto

Após o suícidio do seu melhor amigo, Márcio muda-se para seu apartamento, um lugar onde já ocorreram muitos outros suicídios. Pesadelos estranhos começam a perturbar o novo morador que passa a acreditar que tudo tem ligação com um espelho antigo que o levará para uma estranha viagem na Fuga da Sanidade.

ZONA DA ANGÚSTIA Por Rodrigo Carvalho®

Desde que decidi me mudar para este apartamento tenho ouvido estórias sobre ele. Localiza-se em um prédio velho onde já houve muitos suicídios. Dizem que este prédio é assombrado pelos espíritos dos suicidas. Não acredito muito em assombrações e acho que se visse uma não ficaria com tanto medo assim. Meus amigos mais supersticiosos tentam me convencer de que, talvez, esses espíritos malignos tenham feito Fernando se suicidar. Fico muito nervoso quando eles dizem isso, será que não tem respeito pelo meu amigo? Será que não percebem que sua família já sofreu demais para ter que ouvir essas brincadeiras de mau gosto? O último que falou isso eu o agredi com socos e pontapés, pois já não agüentava mais essas estórias. Todos sabem que Fernando era quase um irmão para mim. Nós crescemos juntos, estudamos nas mesmas escolas e até namoramos duas gêmeas no colegial. Eu fui seu padrinho de casamento e padrinho de sua filha. Amanda, sua esposa, era uma mulher adorável, meiga e muito bonita. Sua filha, Sabrina, também puxara a beleza da mãe e era uma criança inteligente e brincalhona. Eles eram sem dúvida, uma família feliz. Mas infelizmente essa bela estória teve um final trágico.
Há um ano atrás, Fernando e sua família chegavam da fazenda quando um carro desgovernado os atingiu matando sua esposa e filha. Desde desse dia ele nunca mais voltou a sorrir. Sofri ao seu lado como sempre fizera quando algo ruim acontecia. Sofri como se fosse minha esposa e filha que tivessem morrido, mesmo nunca tendo casado.
A única pessoa a quem ele ainda conversava era comigo, mas já não existia alegria em sua conversa. Seus olhos se enchiam de lágrimas todas as vezes que se lembrava delas. Eu já não agüentava mais vê-lo desse jeito e com muito esforço e com o apoio de seus familiares e de nossos amigos, convencemos Fernando a fazer terapia. As coisas melhoraram um pouco. Ele já aceitava conversar com outras pessoas e sorria às vezes.
Estava tudo indo bem até que um dia me telefonaram dizendo que ele se atirara da janela do seu apartamento; que fica no último andar em um dos prédios mais altos da cidade. Seu rosto estava irreconhecível e ele só foi identificado pelos seus documentos e sua aliança.
Em seu testamento ele disse que deixava o apartamento e todas as suas coisas para mim. Nunca gostei deste prédio. Ele é muito antigo e já houve muito sofrimento aqui. Mas não podia negar tal presente vindo de alguém que significava muito para mim.
Desde de mudei-me para cá, tenho tido sonhos estranhos com um espelho antigo que encontrei no quarto do antigo casal; que agora é onde durmo. Esse espelho me impressionou desde a primeira vez que o vi pelo visual grotesco e assustador. Talvez fosse isso o motivo dos pesadelos.
O cenário de todos os sonhos era aquele apartamento. Via pessoas andando; desconhecidas para mim. Também ouvia conversas e o espelho sempre aparecia clareando o quarto com uma luz azul-mórbida vinda de dentro dele. Às vezes via rostos e escutava sussurros vindos de lá. Mesmo cético como sou, não conseguia me conter e acordava assustado, lavava o rosto e voltava a dormir. Geralmente esses pesadelos voltavam, mas depois eram substituídos por sonhos mais confortantes e alegres.
Assim como crescia o meu medo, a minha curiosidade de saber o que havia atrás daquele espelho crescia também. Aos poucos fui me acostumando com os pesadelos e parei de ter tanto medo. Agora só restava saciar minha curiosidade.
Numa noite quando tivera meu sono novamente invadido por tais horrores que se escondem no fundo de nosso inconsciente, descidi atravessar a luz mórbida que vinha do espelho. Senti uma força me puxar em uma velocidade incrível. Em seguida me encontrava dentre águas que não pareciam ter fundo. Mesmo não sendo anfíbio, conseguia respirar tão bem quanto um. Comecei a nadar para cima até finalmente ver uma luz mórbida semelhante a do espelho. Sai dentro de um tipo de piscina com bordas de pedra dentro de uma grande câmara. Havia quatro esculturas de belas mulheres nuas usando colares, pulseiras em forma de serpente e chapeis largos sem abas, semelhantes aos dos antigos faraós. Seus corpos eram belos, porém havia certos detalhes que insinuavam ossos saindo como suas colunas e sua caixa torácica que abaixo de seus belos e firmes seios exibiam-se espinhas tentando rasgar a pele. Todas eram feitas de um cristal verde-escuro. Havia uma em cada ponta da grande piscina. Cada uma delas segurava uma tocha com um fogo da mesma cor que vi no espelho e quando subi aqui; aquele azul-mórbido. Sai da piscina e fui explorar a câmara. Havia quatro colunas sustentando o forro que se encontrava oculto nas sombras acima. As colunas eram detalhadas com rostos grotescos de pessoas deformadas sofrendo em uma agonia eterna. As paredes eram ainda mais assustadoras. Também eram detalhadas com rostos de pessoas deformadas sofrendo, mas estas se confundiam e misturavam com outras formas demoníacas que não podem ser descritas com palavras. Algo como um pesadelo de H.R. Giger, com olhos, ossos e demônios surgindo em meio a pessoas nuas e em poses sensuais entre genitais - ou algo que lembre um - e corpos humanos nus com cabeças e membros de criaturas vindas da mente de um gênio louco.
Também vi uma passagem em forma de arco. De dentro dela uma profunda e misteriosa escuridão me intimidava e impedia-me de atravessar. Porém, vendo que não havia outro caminho, tive que superar meu medo e seguir em frente pela única saída aparente. Não sei se fiz a escolha certa, mas ao entrar naquela escuridão úmida onde não conseguia nem ver a ponta do meu nariz, senti que cruzava o limite da sanidade para sempre.
Segui por um corredor pedregoso e irregular em meio às trevas infinitas por um longo tempo. As pontas das pedras machucavam meus pés e estava preste a sufocar pelo ambiente abafado. Até que finalmente encontrei a saída. Já quase sem forças consegui atravessa-la e tomar um pouco de fôlego. Até o ar não era agradável e apesar de causar menos agonia que o corredor, ainda assim era sufocante.
A primeira coisa que vi foi um deserto coberto de brumas. O céu era escuro e sem nuvens e estrelas. Apenas um cinza-escuro. Deparei-me com uma escada que descia uns cem ou mais degraus. Eles pareciam serem feitos de ossos e havia chifres nos lados de cada degrau que deveriam ter cerca de uns 20 metros de largura. Olhei para cima e vi duas grandes estátuas, uma de cada lado, que deveriam ser feitas do mesmo material usado para fazer as quatro esculturas da câmara que deixara. Elas tinham o corpo de belas moças nuas e cabeças de lobos ferozes e empunhavam lanças afiadas. Vi também que à parte de cima da caverna onde estava era achatada - quase um cubo perfeito - e sua arquitetura lembrava as dos templos maias.
Vendo que não tinha outro caminho, decidi descer a escada que parecia não ter fim. Já bastante cansado e com as pernas doloridas, escorreguei nos últimos cinco ou seis degraus e rolei até cair com a cara na areia do deserto. Um cheiro horrível, semelhante à carniça infestava o ar me causando ânsia de vômito. Levantei-me e segui, sem direção, pelo deserto em meio às brumas que me cobriam e aumentava ainda mais o meu desespero.
Estava realmente muito cansado, mas o meu medo e a vontade de sair daquele lugar, planeta, dimensão, inferno, ou seja, lá o que for, era muito superior ao meu cansaço. Por isso continuei andando, mesmo sabendo que talvez nunca mais fosse voltar para minha casa. Rezava para que tudo não passasse de um horrível pesadelo e que pudesse acordar. Porém foram palavras e vão, pois realmente era um pesadelo, mas do tipo que não posso controlar e talvez não possa acordar.
Já estava para desistir e tentar de alguma forma me suicidar e acabar com aquilo tudo de uma vez. Até que vi uma luz azul. Às pressas, me aproximei mais e vi grandes colunas brilhando. Elas não tinham um tamanho certo, umas eram imensamente altas e outras eram bem mais baixas, como edifícios. Provavelmente deveria ser uma cidade. Como já disse, minha força de vontade era tão grande que criei forças para chegar até a possível cidade. Claro que pensei na forma de vida inteligente que poderia encontrar lá. Baseando-me pelas esculturas e desenhos que vi no templo, certamente não deveria ser das mais amigáveis. Mas essa era talvez minha única chance de voltar para casa.
Já a poucos metros da cidade, vi formas humanas caminhando para diversas direções. Pelo menos de longe não pareciam com monstros demoníacos e hostis, sedentos de sangue e carne fresca, que vieram à minha mente. Isso aumentou minhas esperanças por um curto período de tempo, pois logo percebi que as imensas colunas não se tratavam de prédios e sim de diamantes azuis. Em outras palavras, não era exatamente uma cidade. Mas ainda existia vida inteligente. Só me restava saber se eles estariam dispostos a ajudar.
Ao entrar na tal “cidade”, vi a forma de vida humanóide. Eram muito semelhantes aos humanos, porém uma sombra cobria seu corpo deixando apenas pequenos detalhes escapar. Detalhes como: braços, pernas e um pouco da cintura e em alguns dos ombros. Mas os rostos estavam totalmente cobertos pela escuridão. Elas se assustavam com seus reflexos produzidos pelos diamantes. Acho que eram os espectros das pessoas que se suicidaram.
Eu tentei pedir ajuda a elas, mas era ignorado. Nenhuma sequer me olhou. Era como se fosse invisível. Foi quando visualizei de longe um desses espectros sentado em uma pedra de diamante. Esse me pareceu bem familiar. Ao me aproximar confirmei minha teoria sobre esses seres vi Fernando. Mesmo com seu rosto e parte de seu corpo oculto, eu o reconheci. Corri até ele. Gritei por seu nome. Ele me olhou e por um tempo ficou me encarando com seu olhar, que não poderia ver, apenas imaginar pela forma como ele levantou a cabeça. Ajudei a refrescar sua mente me identificando. Demorou um pouco até ele me reconhecer dizendo de forma bem distorcida “Márcio?”, o meu nome. Ele se levantou e eu o abracei como se ele não estivesse realmente morto. Ele por outro lado não me abraçou. Apenas ficou parado, em pé. Disse novamente com sua voz distorcida que eu não deveria estar ali, pois não estava morto. Eu perguntei por que ele havia se suicidado. Sabia que seu sofrimento por ter perdido sua família era grande, mas a vida continua. Ele me olhou no rosto e disse que procurava por respostas e acabou encontrando apenas um deserto com outros sofredores que nem ele. Todos em busca das mesmas respostas que talvez nunca existam. Em seguida me encaminhou até o outro lado da cidade de diamantes. Chegamos até um diamante de cerca de três metros de altura e dois de largura e brilhava mais que os outros. O reflexo de Fernando produzido pelo diamante estava como ele era antes de se matar, com vida e sem aquele manto de sombra que cobria seu corpo. Ele sorria e dizia que deveria seguir e ir voltar a minha vida e nunca cometer o mesmo erro que ele cometeu. Despedi-me dele e atravessei o diamante. Estava voando em meio a um túnel de luzes azuis em alta velocidade. No fim dele tinha uma luz branca. Escutei uma voz feminina falando comigo. Ela me contava coisas que pareciam ser pessoais.
A luz ficava cada vez mais perto até que abri os olhos e me deparei com a luz de uma lâmpada no teto de um quarto branco. Pelos objetos que vi ao redor, deveria estar em um hospital. A voz feminina que não parava de falar vinha de uma enfermeira que estava de costas para mim. Ela tinha pele morena-clara e cabelos ondulados e compridos. Perguntei onde estava e ela se virou assustada como se eu fosse um cadáver voltando à vida. Logo em seguida ela chamou um médico e tudo foi explicado para mim.
Estive em coma por uns seis meses. Fui encontrado desacordado em meu apartamento por uns amigos e levado para lá.
Novamente tentaram convencer-me a abandonar aquele apartamento assombrado e neguei mais uma vez. Com fantasmas ou sem fantasmas ainda era um presente do meu melhor amigo e nunca deixaria outro morar lá. Às vezes presencio fenômenos estranhos, mas não me impressiono como antigamente. Talvez por agora conhecer o que é desconhecido para muitos. Moro lá até hoje, convivendo com aqueles que procuraram respostas do outro lado e só encontraram dor e sofrimento. Confesso que já pensei em me matar, mas quando me mudei para cá, aprendi que só há respostas na vida.

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