HERÓI ? Por Rodrigo Moreno®
“Meu filho! Eu já disse que não tem ninguém lá!”, gritou a mãe de Leo, sua voz já estava ficando rouca e sua paciência estava se esvaindo. “Calma querida... ta tudo bem...”, consolou o pai. À frente de Leo, o garoto loiro com cerca de 7 anos continuava gritando pedindo socorro. “Eu tenho que ajudá-lo! Alguma coisa vai acontecer ou já deve estar acontecendo! Esse menino precisa de mim!”, insistiu Leo. Entretanto, a sua frente os seus pais só viam a cama desarrumada do filho e alguns pôsteres de bandas de rock na parede.
Sua mãe, com os olhos vermelhos e lagrimando, fitou-o mais uma vez, com um olhar que expressava compaixão e decepção, antes de deitar o rosto no ombro do marido que a consolava. “O Leo enlouqueceu... oh, meu Deus...!”, sussurrou ela. Leo continuava apavorado, mas não ignorava o olhar esquisito de seus pais observando-o como se fosse algum doente em estado terminal. Ele gostaria muito que sua mãe estivesse certa. Gostaria muito de estar realmente louco, mas pelas poucas experiências que teve com precognição tem certeza de que tudo que prever irá se concretizar uma hora ou outra.
Infelizmente nunca previu coisas boas como o resultado da loto ou questões de provas. Suas previsões sempre se limitaram a terríveis tragédias, como acidentes e assassinatos. Nunca de pessoas conhecidas. Mesmo assim, sentia-se na obrigação de tentar evitar. Entretanto, era só um garoto de 16 anos que ainda dava satisfação aos pais e não poderia sair por aí bancando um vigilante como nas revistas em quadrinhos. Além disso, é magro e não é um exímio lutador. Chamar a polícia também estava fora de cogitação. Que policial em sã consciência acreditaria em tal absurdo, ainda mais vindo de um garoto como ele? Aliás, quem acreditaria? Nem seus próprios pais acreditavam! Depois de terem visto o filho jurar que um garotinho gritava pedindo socorro o levaram num psicólogo em seguida num psiquiatra e depois ele passou uns dias numa clínica psiquiátrica.
Mas suas visões continuavam, só que ele aprendeu a disfarçar mais para enganar os pais e os médicos e poder voltar para casa. Teve êxito em seu plano, mas mesmo assim o peso da responsabilidade de seu poder paranormal pairava sobre suas costas. Sentia-se em dívida com a humanidade por não poder evitar as tragédias e lamentava como um médico quando perde um paciente. Quantas famílias já sofreram só por ele ser um garoto totalmente dependente? O que significava aquele dom se ele não poderia usar? Tudo que poderia fazer era se desculpar em pensamento com as vítimas na esperança quase perdida de que elas o ouvissem.
A angústia causada pela sua crise “pseudo-heróica” chegou no ápice quando na última noite seus sonhos lhe trouxeram mais uma visão trágica do futuro. Uma garota, com mais ou menos a sua idade, gritava desesperada pedindo socorro. Seus olhos expressavam o medo e a agonia da alma que se traduzia em lágrimas que deslizavam pelo rosto coberto de hematomas. Ela fitava o rosto do carrasco pedindo misericórdia. Uma negociação silenciosa pela vida era feita desesperadamente naquele momento. Mas o objetivo dele não era negociar. Não dava para ver sua fisionomia. Apenas a sombra projetava na parede denunciava um homem. Suas mãos agarraram o pescoço frágil dela que tentava lutar inutilmente. Lutou até suas forças se esvaírem e se entregar à morte iminente. Nada que Leo não tinha visto antes em outras visões, com outras moças, mas dessa vez ele conhecia a vítima. Seu nome era Anna e morava há alguns quarteirões de distância da sua casa. Suas mães se davam muito bem, porém eles só conversaram três vezes. Duas na igreja e uma quando se encontraram no ônibus. “Ela é uma garota legal, tem planos... ela não deve morrer...”, pensa Leo “Acho que dessa vez eu consigo evitar! Eu a conheço, então se ficar mais íntimo posso ajudá-la!”, dessa vez já falava seus pensamentos em voz baixa olhando-se no espelho do banheiro como se dialogasse com seu reflexo.
No dia seguinte encontrou-a indo para a parada de ônibus pela manhã. Era época de chuva. O dia estava frio e as nuvens anunciavam a próxima chuva que começava com um simples chuvisco. Ela segurava os cadernos e apressava os passos para não se molhar. Ele por sorte, não esquecera o guarda-chuva como da última vez e apressou também os passos para chegar até ela e oferecer uma carona. Ela, sorrindo gentilmente, aceitou. “Obrigada! Se eu molhar esses livros meu pai me mata!”, agradeceu em tom de brincadeira. “Então eu sou o seu salvador!”, disse Leo brincando também, “Ahahah. Talvez...”.
Foram conversando até a parada e por sorte pegaram o mesmo ônibus. Em cerca de alguns minutos já conversavam sem tantas formalidades como se fossem grandes amigos de infância. Compararam gostos em comum e contaram historias pessoais. Quando a parada onde Anna desceria estava próxima ela se levantou e eles marcaram de pegar o mesmo ônibus no dia seguinte. Uma semana depois viajando juntos, decidiram ir ao cinema. Foi então que começaram a sair. Cerca de um mês já estavam no inicio de um relacionamento amoroso.
Suas famílias aprovavam, pois, para eles, tanto Leo quanto Anna eram “Bons partidos!”. O que eles não imaginavam é que duraria tanto. Terminaram o colegial e entraram na faculdade juntos. Raramente brigavam e estava claro que a probabilidade de continuar no casamento era maior do que de terminarem. Ele se formou como psicólogo e ela dentista. Foram viver juntos e depois dela engravidar decidiram alegrar os parentes com o tão sonhado casamento. Leo se orgulhava da esposa, pois mesmo com 25 anos ela mantinha a aparência daquela garota de 16 que ele dera uma carona no seu guarda-chuva.
Enquanto as suas visões... ele quase não as tinha. Mas não se importava mais com isso. Tudo que queria era ser feliz. Mais feliz do que já era. Claro que nem tudo foi uma grande felicidade como ele imaginara. Ainda tinha o assassino de Anna que deveria ser combatido. Leo atenciosamente observava os ex-namorados e alguns amigos que ele não gostava. Fazia o possível para não parecer ciumento.
Quando eles estavam com um ano de namoro. Leo foi à casa de Anna como prometera. Não haviam marcado nada antes. Ele apenas recebeu um telefonema dela pedindo para que ele passasse lá porque estava só e com medo. Não medo de alguém específico segundo ela, “Apenas medo de ficar sozinha...”, disse ela calmamente ao telefone. “Talvez ela esteja afim de ver um filme ou fazer sexo. Ou os dois!”, pensou Leo. Arrumou-se bem e se apressou ansioso porque “Essa noite promete!”, disse ele sorrindo satisfeito enquanto penteava o cabelo se olhando no espelho. Mas sua opinião mudou e sua felicidade e ânsia transformaram-se em medo e preocupação quando chegou na frente da casa dela e encontrou a porta entreaberta. Ela estava gritando com alguém. “Não, eu não quero! Me deixa em paz! Eu juro que chamo a polícia!”, gritava ela. “Não vai demorar nada... mas se não quiser eu te mato agora!”, respondeu uma voz masculina e furiosa. “Você vai ser minha essa noite!”.
Leo não se conteve e correu pra dentro da casa. Ao entrar viu as costas de um homem com cerca de 1,80. Na frente dele se encontrava Anna com uma expressão de medo no rosto, afastando-se a passos lentos, mas pronta para correr se fosse necessário. Eles não perceberam a entrada de Leo. “Me deixe em paz!”, dizia Anna com uma voz trêmula e tentando gritar. Leo correu e pulou em cima do homem. “Te afasta dela!”. Uma briga entre eles dois foi travada. Não houve socos nem pontapés, apenas mediam forças tentando imobilizar um ao outro. Apesar do homem ser mais forte, Leo, movido pela raiva, demonstrou uma força que nem ele mesmo conhecia. Anna começou a gritar e em seguida chegaram os vizinhos e rederam o homem. Depois chamaram a polícia e os pais de Anna. Sua mãe não conteve o desespero e estapeou o rosto do homem várias vezes até ser impedida pelos policiais. Não por vingança, mas para repreendê-lo, pois na verdade ele era o seu irmão mais novo. Isso chocou a todos que ficaram sabendo que Anna era assediada sexualmente pelo tio há alguns anos. Leo ficou decepcionada por ela nunca ter comentado nada, mas não pediu nenhuma satisfação. O importante era que ele conseguiu salvá-la. Esse pesadelo ficou no passado eles estavam felizes esperando o primeiro filho.
Quando Ruan nasceu, Leo decidiu abrir sua própria clínica. Tiveram que fazer algumas despesas, mas antes do segundo aniversário do filho, já estavam bem estabilizados. Mudaram para uma casa melhor e maior. Dois carros do ano na garagem e aos três anos Ruan se preparava para estudar em um dos colégios mais caros e bem conceituados da cidade. Leo tinha tudo que queria e se sentia o homem mais sortudo do mundo. Vivia feliz e era bem visto pelos amigos. Sempre fora um homem de temperamento calmo, porém em uma festa de casamento de uma grande amiga de Anna, descobriu seu verdadeiro ponto fraco. Anna reencontrou um antigo namorado e eles ficaram conversando a noite inteira. Não que fosse ciúmes diria Leo, mas eles passaram a noite muito juntos e ela quase não deu atenção ao marido. No carro, Leo calmamente tentou conversar sobre esse ex-namorado. “Não vai dizer que tá com ciúmes?”, disse Anna em tom de brincadeira. “Claro que não... eu confio muito em você, mas bom... poderia ter me dado mais atenção. Tive que aturar aqueles sogros da sua amiga a noite toda.”, respondeu Leo disfarçando a seriedade no mesmo tom de brincadeira. As palavras foram perdendo a calma e em alguns minutos estavam prestes a ter uma grande discussão se não fosse por Leo se desculpar. Eles decidiram esquecer aquele desentendimento. Leo achava que poderia, mas estava enganado. Seu próprio conhecimento sobre a psique o enganou.
Depois daquele dia passou a fazer perguntas sobre os colegas de trabalho de Anna, quem era aquele amigo que lhe deixa em casa todas as sextas e por que ela conversava muito com o vizinho da frente. Aos poucos seu ciúme foi ter tornando gradativamente em um possível transtorno psicológico. Ele sabia disso, mas não conseguia controlar, pois no fundo tinha medo de que Anna o trocasse por alguém melhor. Isso arruinaria sua vida. Seu filho era muito novo para ver os pais se separarem e poderia ficar traumatizado ou ter outros problemas, até mesmo sociais! Leo não poderia deixar isso acontecer.
Desnecessário dizer que esse ciúme gerava grandes discussões entre o casal. Ruan, que já tinha 7 anos, observava tudo assustado. Anna já não agüentava mais aquele tormento e pediu para Leo procurar ajuda profissional. Ele sempre prometera que ia, mas nunca cumpria. Hoje ele lamenta muito isso, pois quando viu um homem saindo de sua casa quando chegava para o almoço não conteve o ciúme e entrou gritando com Anna pedindo satisfação. Ela disse que era apenas o encanador que havia chamado para consertar a pia. “Acha que eu vou acreditar nessa história sua vagabunda!”, gritou Leo e em seguida estapeou-a no rosto. Assustada ela tentou escapar, mas Leo a agarrou pela cintura e arremessou-a contra a parede. Em seguida socou-a várias vezes antes de suspendê-la pelo pescoço com as duas mãos. “Não!”, gritou Ruan que assistia tudo. “Socorro!”, continuo ele. Leo ignorou os gritos do filho e o monstro que se escondia atrás de seu rosto amigável e sorridente projetou-se aos olhos de Anna que perdia o ar sem entender o porque de todo aquele sofrimento. Eles eram tão felizes... Tinham um filho bonito, loiro como o pai. Ruan sempre fora uma criança alegre, mas agora gritava ao vê-la morrer. Por quê tudo isso? Inveja de terceiros que eram infelizes e desejavam pelos menos um terço de sua felicidade? Esses e outros pensamentos passavam rápidos por sua cabeça antes de perder a capacidade de raciocinar. Aos poucos Anna sentia seu fôlego chegar ao fim e a última cena que pôde ver foi o filho gritando a alguns metros atrás daquele par de olhos bestiais do homem que um dia ela pensou ser seu herói, mas agora era o carrasco.
Após o homicídio a besta desincorporou da consciência de Leo que foi despertado pelos gritos do filho. Ao olhar para ele lembrou a visão do garotinho que gritava pedindo para socorrê-lo. Também se lembrou do sonho premonitório que via Anna ser assassinada. Foi preso e internado num sanatório após provar sua condição mental. Ruan foi morar com os avós maternos e nunca mais foi uma criança normal. Entrou em depressão profunda.
Até hoje, Leo se culpa por tudo. Sempre quis ajudar as pessoas com suas visões achando ser um herói. Nunca imaginou que na verdade era o grande vilão, um monstro que deveria ficar preso para sempre, senão pelas grades físicas, mas pelas grades psíquicas da eterna culpa.