segunda-feira, junho 21, 2010

Caçador Solitário - Conto

CAÇADOR SOLITÁRIO Por Rodrigo Moreno

A noite era um poço enigmático, escuro como a solidão que pairava acima das nuvens. As mesmas nuvens que cuspiam alguma coisa insignificante. O vento gelado corria sobre seu rosto magro de pele lívida, deformado e com traços bestiais, indo bater nas orelhas enormes, finas, mas pontudas em demasia, e o barulho resultante era gorgolejante, suave. Ele descia em alta velocidade com a cabeça, lisa como de um filhote de pássaro, perfurando o ar. Os membros estavam unidos ao corpo franzino semelhante ao de um menino que ainda nem sonha com a puberdade. Descia como desceria um foguete, ou um kamikaze sem avião mergulhando destemido para o fim. Mas para esse personagem o fim estava longe, já que a morte o renegara há muito tempo.
Luzes que pareciam as estrelas do céu que deixara para trás o recebiam, aos poucos sendo contornadas por formas de pequenos prédios, de postos de combustível, de iluminação pública e até de algumas lojas. Os prédios cresciam, a cidade cada vez mais próxima, e por um momento pareceu que se esbarraria, mas já abria as enormes asas de morcego, grudadas nos braços e no corpo. Parou de cair, agora planava suavemente, passando pelos prédios, agora pelos postes, por algumas árvores dormindo na escuridão, e, finalmente, desceu em um telhado. Seu corpo era leve, por isso não emitiu barulho algum, como se nunca estivesse ali pousado. Sentiu o calor da vida abaixo do telhado. Uma família saudável, feliz, que nem imaginava o que os esperava nessa noite. Recolheu as asas. Caminhou pelo telhado como um gato. O calor da vida parecia mais intenso agora. Será que estava abaixo do quarto das crianças? Quantas eram? Três ou quatro talvez, gordinhas e cheias de vida, e sangue. O par de petecas escuras que eram seus olhos assumiu um tom mais rubro. Presas de marfim cresceram no sorriso largo, animalesco. As mãos cadavéricas de veias arroxeadas terminavam em garras pontudas; dez espadas torcidas e pequenas, mas de longe afiadas.
Correu mais para frente, ainda ágil como um felino. Debruçou-se sobre a borda do telhado e, pendurado de cabeça para baixo, observou por dentro da janela; o vidro refletia alguns focos de luz noturnos, de postes a apartamentos. Apesar da escuridão, ele conseguia enxergar perfeitamente – os séculos vivendo nas trevas escondido do sol o presentearam com esta capacidade. Eram apenas duas crianças. Um casal de irmãos. Dormiam em camas separadas. Havia brinquedos espalhados ao redor, um enorme armário, e uma modesta televisão num canto próximo à porta.
Todos os órgãos de seu corpo há muito estavam atrofiados, tanto que até esquecera a sensação de um coração coberto de adrenalina, mas deveria ser algo parecido com essa sensação virtual, superficial e longe da humanidade, que agora sentia.
É claro que a janela estava bem trancada. Começou a se metamorfosear em sombra, odiava fazer isso, mas não tinha jeito. Doíam os músculos, a visão ficava um pouco abafada – pois olhos não tinha mais – e perdia o tato, tendo que se guiar apenas pela mente. Foram duros anos aprendendo isso sozinho, pois não conhecia outros de sua espécie. Sabia que existiam, mas todos eram solitários como ele. Após o processo de transformação, a janela fortemente trancada por pais cuidadosos já não era mais um obstáculo. Entrou no quarto se misturando às trevas do ambiente. Agora sentia seu corpo largo, enorme, envolvendo todas aquelas quatro paredes. Ele era tudo que fosse sombra ali, e estava por trás e por cima dos brinquedos, da TV, do armário, das camas onde as crianças dormiam com meios sorrisos de lábios cerrados, e também as sombras destas. E poderia ser muito mais; as sombras dos outros ambientes da casa, a sombra da cama de casal onde dormem os pais, as sombras deles, e qualquer outra ausência de luz que ali se encontrasse. Mas preferiu ficar apenas neste quarto, com as saudáveis crianças e suas vidas invejáveis que agora ele furtaria como um ladrão invisível, silencioso.
Após um breve momento a criatura retornou à sua forma original sugando algumas sombras do local e tornando-as rijas. Não demorou muito para sentir seu corpo de novo. Aproximou-se do menino. As presas cintilaram letais quando a criatura escancarou sua bocarra parecendo que ia engolir o mundo. A pele macia do pescoço do mortal era pouca coisa mais dura que o ar. O sangue de crianças assim era tão doce, tão magnífico, tão prazeroso, que chegava a ser alucinógeno. Imagens de um passado há muito esquecido brotavam no ar. Via-se ainda tão mortal quanto a caça que saboreava. Era um jovem curioso, envolvido com magia negra e forças ocultas. Um conde rico de coisas materiais, porém de espírito pobre, que adorava maltratar seus subordinados e sacrificá-los em rituais pagãos. Não à toa que o destino, revoltado, fez justiça tornando-o solitário afastando todos do seu convívio: familiares, supostos amigos, aliados... E nem a morte o quis quando era seu momento de partir. Aos poucos a ilusão foi se dissipando, a consciência voltando ao quarto onde ele sugava a vida do menino.
Sua intuição de predador o alertou sobre uma presença hostil se aproximando sorrateiramente. Os passos estavam próximos. Novamente se transformou em sombra passando pelo mesmo processo, dessa vez não tão dolorido, pois, estava fortalecido graças ao sangue do garoto. A porta do quarto rangeu ao abrir projetando no chão um facho de luz, aos poucos se transformando em um triângulo que se alargava ainda mais até aparecer uma sombra humana. Logo acima, na entrada da porta, uma mulher dos seus trinta e poucos anos de roupão de dormir, a cara engelhada de sono e o cabelo despenteado, observava suas crianças dormindo tranquilamente. Pareceu se contentar com a visão, mas para ter certeza que estava tudo bem, acendeu o interruptor. A luz era muito forte, e apesar de artificial – por isso inócua – causava um grande desconforto para o habitante das trevas. Ele emitiu um leve grito, quase inaudível, o grito que o ar faria se tivesse voz, ou o ronco do silêncio que dormia tranquilo com seus filhos, ou até o único som que se propagaria no vácuo, se ele assim o permitisse, mas foi interpretado como um distante barulho vindo de longe, tão longe, que pareceu causado pela imaginação, e rapidamente foi esquecido.
A criatura de sombras agora se sentia despedaçada, um braço na sombra atrás da porta, o outro atrás do armário, seu busto bem abaixo da cama do menino, a cabeça e outras partes do corpo divididas em penumbras pelo quarto. Não sabia quanto tempo a maldita mortal ficaria por ali, mas não aguentava mais o excesso de luz cegando sua visão. Teve que recuar. Devagar como uma lesma foi andando para trás, para além da janela de volta ao seu refúgio no telhado. Ficaria lá até a luz do quarto se apagar e assim poder retornar para terminar a refeição. O menino já deveria estar praticamente morto, mas ainda tinha sangue fresco em suas veias, e esse alimento jamais deve ser desperdiçado. Porém, o que não notara até então é que o crepúsculo já descia do céu gradativamente. Apavorado, abriu as asas e voou num salto tão súbito que algumas telhas abaixo de seus pés, que pareciam patas peludas, moveram-se violentamente. O barulho do bater de asas foi o primeiro som daquela madrugada. A mãe, com o cenho franzido, se aproximou da janela e viu um enorme pássaro negro desaparecendo no horizonte.
Devagar saiu do quarto fechando a porta com bastante cautela para preservar as poucas horas de sono que ainda restava para suas crianças.

A claridade do sol invadiu o quarto pela janela de vidro. A menina se remexeu na cama, apertou as pálpebras firmemente, e se relutou em abandonar o sonho que esqueceria ao acordar. No canto mais escuro do quarto, onde ficava a outra cama, o menino, imóvel, abriu os olhos. Em seu pescoço duas coceirinhas insignificantes – eram as feridas cicatrizadas, invisíveis ao olho nu. Via a irmã que agora se virava encolhida em sua direção. Ela respirava profundamente, e exalava um calor vital, saboroso, e em seu pescoço o sangue bombeava, e bombeava...