domingo, abril 27, 2008

DEUSES ALQUIMISTAS - Conto

Uma escultora começa a questinoar os motivos de sua cidade ser tão desconhecida. Nessa sede por respostas ela entrará numa busca insólita que termirá na Fuga da Sanidade.

DEUSES ALQUIMISTAS Por Rodrigo Moreno®


Com mãos sujas de barro e movimentos suaves Marina terminava mais uma escultura. Dessa vez uma mulher nua em uma pose que lembra as antigas estátuas gregas. Ainda faltava fazer os detalhes do rosto e do corpo. Mas, movida por uma curiosidade, colocou-a junta do homem nu que havia terminado há alguns dias. Pareciam Adão e Eva feitos do mesmo barro. No entanto, nunca teriam um contato físico, nem sequer uma troca de olhares, pois estavam fadados a permanecer em suas posições pela eternidade. Orgulhosa de seu próprio trabalho, a artesã contemplou o casal com um sorriso de admiração. Ao redor várias outras esculturas de pessoas, animais, casas, carros e cenas do cotidiano estavam espalhadas pelas mesas da oficina. Além de outros objetos úteis para o cotidiano como vasos, xícaras, pratos, etc. Todas não passavam dos vinte centímetros. Apesar do carinho que tinha por suas obras, todas teriam o mesmo destino: a loja de artesanato de Marcos, seu irmão. De lá sabe Deus pra onde. Pensando nisso colocava um preço considerado em cada trabalho. Era uma forma de valorizar sua arte e fazer o comprador ter consciência de cuidar bem de um produto que lhe custou caro. Marina levava em consideração a dificuldade que teve e, claro, o material. Não é tão fácil para ela conseguir tanto barro. Esse era o dia-a-dia de uma mulher simples em uma cidade mais simples ainda.

Seu mundo se resumia naquela cidadezinha, um pequeno espaço de terra afastado da urbanização que via na tv. Entretanto, Marina nunca reclamou. Se morasse em uma cidade grande, seu trabalho não seria tão valorizado e em pouco tempo deveria arranjar um emprego em algum escritório ou supermercado. O único problema daquela cidade é que sempre via as mesmas caras todos os dias. O mecânico Chico, o padre Ney, o padeiro Tonho, que sempre lhe dava uma nova cantada toda a vez que ia comprar pão, a Dona Rita, velha aposentada que passava as tardes na frente de casa fofocando com a Dona Zica, professora da única escola da cidade. Zica só dava aula pela manhã e tinha a tarde toda pra fofocar, atividade que se destacava. Entre outras pessoas... Eram sempre os mesmos vizinhos que pareciam nunca receber parentes ou amigos. Nem mesmo em épocas de férias as coisas mudavam. Nada de turistas, nem sequer aventureiros estrangeiros. As esculturas de Marina eram compradas pelas pessoas dali mesmo.

Era estranho, pois, modéstia à parte, era uma cidade bonita coberta de árvores, limpa, com praças que só não eram mais calmas por causa das gargalhadas de crianças brincando. Segurança também era um problema a menos na vida daquelas pessoas. A criminalidade era quase nula. Mas se os visitantes fossem interessados em aventuras, havia algumas belas cachoeiras tocando melodias líquidas que ecoavam pelas árvores fazendo perguntas para quebrar o silêncio, que eram respondidas pelo farfalhar das folhas quando batia uma brisa. Eram paraísos imaculados pela poluição desde a Criação.

Perguntas como “O que há de errado com a cidade?” ou “Por que nunca recebemos turistas?” começaram a latejar na mente de Mariana. A curiosidade era tanta que ela passou a dedicar a maior parte de seu tempo livre a procura de respostas. Consultou livros de história da biblioteca municipal, conversou com pessoas mais velhas, passeou pelo museu e até consultou o Google. Mas nada encontrou. Pelo menos, nada de relevante. Era como se Vila do Sossego, sua cidade, não existisse para o mundo. Isso é normal. Muitas cidades pequenas são desconhecidas.

Com a falta de sucesso nas pesquisas, esses questionamentos apenas aumentavam. Essa fome por respostas era tão grande que começou a trazer dores de cabeça para Marina. No início eram quase imperceptíveis, como se vespas voassem dentro de sua cabeça. No entanto, com cerca de uma semana, essas vespas se tornaram bolinhas de aço.

A dor latejante parecia causar rachaduras no crânio de Marina. Não poderia sair de casa naquela manhã e nada de trabalho até o médico permitir, foram essas as ordens de seu irmão. Ela não conseguia nem mexer a boca para questionar. O Doutor Joaquim, após examinar a paciente, disse que ela estava ardendo em febre e deveria permanecer em repouso por uns dois dias. Receitou uma medicação simples e entregou para Marcos que foi direto pra farmácia. Marcos era um segundo pai para a irmã mais nova.

Nos poucos minutos que Marina permaneceu sozinha, depois que o médico e seu irmão saíram, sentiu uma dor aguda no meio da testa. Parecia que algo perfurava o cérebro naquele ponto. Soltou gritos que só foram ouvidos pelo silêncio camuflado nas paredes da casa. O mesmo silêncio perene de um calabouço.

Marina pensou que ia morrer assim que chegasse ao limite daquela tortura. Percebeu o engano quando abstrações do seu inconsciente tomaram formas projetando-se na frente de seus olhos. Eram idéias caóticas que, por algum motivo, surgiram em sua mente nos últimos minutos. Olhos de gigantes observavam-na como cientistas observam o comportamento de um ratinho preso numa gaiola. Via apenas silhuetas cobertas por sombras, mas seus olhos analíticos estavam claros. Tão claros que pareciam vários pares de luas-cheias unidas em um círculo.

“Já estou começando a delirar...”, pensou ela. Subitamente a porta se abriu batendo na parede ao lado. Marcos entrou no quarto apavorado. Sem dúvida havia escutado os últimos gritos. “Marina! Marina! O que aconteceu?”, gritava ele, tremendo e preparando seu coração para encontrar a irmã quase desfalecida. Um certo alívio acalmou seu espírito quando viu Marina, ainda com forças, se contorcendo de dor com as mãos na cabeça. Parara de gritar. Apenas apertava os dentes e as pálpebras fortemente. Estava jogada no chão.

Marcos não teve tempo para pensar e agarrou sua irmã levantando-a e em seguida colocou-a na cama. “Gigantes! Cuidado! Gigantes!”, sussurrava ela como se estivesse tendo um pesadelo e não pudesse acordar. Marcos chamou o médico novamente. Doutor Joaquim chegou em menos de cinco minutos. Sua paciente havia parado de contorcer-se. Parecia calma, mas continuava delirando em murmúrios... “Cuidado com os Gigantes!”.

O médico disse que eram apenas delírios, ela não morreria por causa de uma febre. Disse que Marina deveria passar uns dias em casa e não poderia ficar sozinha. Marcos já estava pensando em quem contrataria para observar sua irmã quando saísse para o trabalho. Talvez a Dona Rita estivesse disposta, afinal ela não tinha mais nada pra fazer a não ser ficar de fofoca a tarde toda.

Dona Rita aceitou com um sorriso abençoado, típico de velhinhas bondosas e prestativas. “É claro que cuidarei da sua irmãzinha. Será um prazer!”, disse ela, “Não se importa se eu convidar a Zica pra me fazer companhia, se importa? Temos muito que conversar...”, pediu a aposentada. “Claro que não... Fiquem à vontade!”, disse Marcos.

Dizer que elas duas ficaram literalmente de olho na Marina seria um exagero. Passaram as tardes fofocando e vendo tv. Vez por outra uma delas ia ao quarto da moça para ver seu estado. Dona Rita fez um chá que aprendeu com sua mãe para a febre abaixar. Mais um esforço em vão. A febre parecia aumentar, e os delírios continuavam. Sempre sobre gigantes de olhos que parecem luas. As duas senhoras assustavam-se com aquilo e começaram a acreditar que tinham feito alguma bruxaria pra moça. Benzeram-se rapidamente. Passaram a fazer orações diariamente perto do corpo de Marina. Esta ouvia de longe murmúrios de pessoas rezando. No entanto, essas rezas eram abafadas pelas vozes estrondosas dos gigantes conversando. Parecia português, mas, pela grande vibração, as palavras eram incompreensíveis como bombas explodindo os tímpanos de uma frágil criatura.

Não se conteve. Correu para a rua sendo seguida pelas suas duas protetoras. Gritava como louca no meio da cidade. Muitos riam, outros contemplavam assustados. “Gigantes! Protejam-se dos gigantes!”, gritava ela. As duas senhoras que a seguiram assustaram-se e preferiram manter distância. Alguém foi correndo avisar a Marcos que sua irmã havia pirado de vez. Marcos deixou a loja na responsabilidade de seu ajudante e saiu às pressas. Logo em seguida correu em direção a sua irmã que berrava loucuras no meio da praça, rodeada de curiosos.

Marina contemplava o infinito absoluto naquele manto escuro do céu. “Olhem as luas!”, gritou ela novamente. Muitos que estavam presentes olharam para cima e viram apenas estrelas que brilhavam como diamantes. Luas? Só existia uma. Todos puderam comprovar. “As luas são os olhos deles! Eles estão nos observando!”, insistiu Marina. Em seus olhos refletiam-se vários objetos celestes em forma de globos brilhando. Em seguida a silhueta de um par de mãos gigantes movia-se pelo céu. “Mãos! Olhem as mãos!”, gritou Marina apontando com o dedo para o alto.

Novamente ninguém viu nada. Mas Marina continuava insistindo até ser repreendida por seu irmão. “Marina! Para com isso pelamordedeus!”, gritou Marcos. Em seguida segurou-a pelos braços. “Vou te levar pra casa agora!”. “Me solta! Vocês têm que me ouvir! Os gigantes vão nos matar!”. Aos gritos ela foi levada pra dentro de casa. Uma aglomeração de pessoas se formou na porta da frente. O padre achava que ela poderia estar possuída pelo Demônio. Alguns se benzeram ao ouvir essa hipótese.

Da janela do quarto, Marina via movimentos estranhos no céu. Jurava para seu irmão que eram mãos titânicas. Ele dizia que eram apenas delírios, que ela tava doente e deveria parar de bancar a maluca no meio da rua. Marcos saiu do quarto e trancou a porta. Foi até a frente da casa pedir para as pessoas irem embora porque já estava tudo resolvido e Marina ficaria bem. Alguns ignoravam seu pedido fazendo perguntas indiscretas. “Ela tá possuída pelo Inimigo?” , “Ela ficou realmente doida?”, entre outras...

Marcos ignorava as perguntas – mesmo sentindo-se ofendido – e insistia para que todos fossem embora. Quando, subitamente, um estrondo seco de algo cedendo e um grito vindo de dentro da casa suscitaram um silêncio na multidão agitada que durou alguns segundos. “Marina!”, gritou Marcos correndo para dentro. Os comentários curiosos e indiscretos na aglomeração de pessoas começaram novamente. Todos pareciam mais assustados.

Marcos abriu a porta com tremenda força que quase arromba. Marina não se encontrava mais lá. Olhou a janela e surpreendeu-se ao ver que não existia mais. No lugar estava um buraco enorme como se um carro estive entrado. O que restou da antiga janela estava em pedaços em meio aos restos da parede no chão. Dessa vez foi Marcos que pareceu enlouquecer. Gritava pela irmã. Saiu pelas as ruas à procura dela, seguido da multidão que parecia mais preocupada em querer encontrar a moça viva do que por mera curiosidade.

A busca durou alguns dias que pareceram anos até que finalmente um dos moradores, Zé Maria, encontrou a moça perto de seu quintal. Estava toda suja de lama e nua como a natureza a criou. Foi levada para casa e afirmava não se lembrar de nada. Nem mesmo do inicio da febre. Tudo que se lembrava era que estava trabalhando na oficina. O importante era que sua saúde encontrava-se perfeita, nem marcas de qualquer forma de violência, nem ferimentos acidentais que poderia ter sofrido, e isso quem confirmou foi o Doutor Joaquim. A febre e as dores de cabeça também haviam passado. O mistério desse desaparecimento ficou apenas no imaginário popular de Vila do Sossego. Poderiam ser alienígenas? Demônios? Algum psicopata? Por que não a machucaram? A verdade encontrava-se bem longe dali. Talvez não tão longe, bastava apenas olhar para o céu...

Em um laboratório em algum lugar sem nome, um grupo de cientistas estuda o comportamento de suas novas criações. Homens minúsculos, do tamanho de uma barata, criados a partir do barro. Basearam-se por fórmulas encontradas em livros de alquimia que permaneceram escondidos durante a Inquisição. Havia centenas criações defeituosas que se encontravam espalhados em vidros. Eram seres mal-acabados. Alguns tinham uma perna ou um braço maior que seu par, outros uma orelha que parecia de elefante, pescoços longos demais, alguns possuíam duas ou três cabeças e seis braços - talvez tenham se misturado a outros homens no momento da produção quando o barro ainda estava mole. Eram os seres humanos (se é que se pode chamar assim) mais horríveis criados naquele laboratório. No entanto, em meio a essa legião de aberrações existia uma pessoa que não aparentava defeito físico algum. Na verdade seu único defeito era a percepção. Algo em seu cérebro lhe deu a capacidade de enxergar mais do que devia. Era uma mulher que gritava enlouquecida. Dava pra ouvir de longe os seus gritos agudos e irritantes como os de um passarinho. Tiveram que colocar uma cópia sua na sociedade onde vivia, uma cidadezinha muito semelhante a essas cidades de interior. De longe parecia uma maquete.

“E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança...” Gênesis cap. 1 : 26